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Recusar e compreender

Misrata
Gente de Misrata

Três apontamentos ainda a propósito da execução pública de Kadaffi e do filho Mutassim, bem como da repercussão que a divulgação mediática desses momentos tem merecido. São também três dificuldades na leitura de um horror que podemos não aceitar mas teremos de compreender.

1. Mais chocante até do que a morte medonha do ex-líder líbio parece-me ser a do filho Mutassim. O que mais perturba a nossa sensibilidade é vê-lo, em fotografias e vídeos tomados depois da captura, bebendo água mineral por uma garrafa e fumando serenamente um cigarro. Percebermos que por minutos lhe foi oferecida a expectativa da salvação («pronto, acabou…»), seguindo-se a esta uma execução sumária e sem piedade. Dar e tirar repugnam a nossa consciência de matriz judaico-cristã, onde castigo e perdão são faces da mesma moeda. Mas nem todos pensam e agem como nós. E nem em todos os momentos ela tem validade. Na guerra, aliás, a primeira coisa a ser perdida é sempre a codificação ética aplicada em tempos de paz.

2. Não tem sido devidamente considerado o facto de o fim horrível de Kadaffi ter chegado às mãos da famosa brigada de choque de Misrata, que jurara apanhá-lo à mão. Misrata, relembre-se, foi a cidade que mais sofreu durante o cerco imposto pelas tropas do ex-ditador, devastada e quase integralmente transformada em escombros, com muitos milhares de mortos, incluindo-se entre estes doentes hospitalizados. Lembrando-nos disto mais facilmente entenderemos a dificuldade do perdão e a tontura da vingança. E a vontade de transportar o corpo para a cidade e de o expor de modo a que as vítimas pudessem olhar de frente o rosto do algoz. Tem milhares de anos e é universal a tradição da decapitação e da exposição entre ao povo vencedor da cabeça do chefe vencido.

3. Uma vez mais, a NATO, e em consequência «os americanos», estão a ser cegamente apresentados por alguns setores como principais responsáveis morais destes atos brutais e definitivos. É óbvio que esta barbárie filmada – e toda aquela que não pudemos ver – lhes escapou ao controlo e que, apesar de instrumentais no derrube de Kadaffi, teriam todo o interesse em evitá-la. Até pela consabida posição dúbia dos líderes ocidentais perante aquilo que se vinha passando desde há décadas na Líbia. Só quem não se esforce por entender a especificidade e a força dos conceitos de honra e vingança no mundo islâmico, ou os distúrbios potenciados por uma guerra civil, pode escandalizar-se com o que aconteceu no terreno e nas horas decisivas. Para nós lamentável e escusado, sem dúvida, mas para «eles» inevitável como exorcismo.

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    Esmagados pelo terror

    Kazimir Malevich, «A Cavalaria Vermelha» (1928-1932). Em 1929, acusado de «subjectivismo» na imprensa, Malevich foi expulso das funções que ocupava, preso e torturado. Morreu só e na miséria em 1935.

    Tradução de um artigo de Julia Luzán publicado na secção de arte do El País Semanal de 16 de Outubro de 2011. Sobre a exposição La Caballería Roja. Crea­ción y poder en la Rusia soviética de 1917 a 1945. Se for a Madrid até 8 de janeiro poderá vê-la no Centro Cultural La Casa Encendida. Informação detalhada a obter aqui. E pode clicar aqui para obter o programa em pdf.

    Outubro de 1917. Ano zero de uma nova era. A revolução russa triunfara e o mundo inteiro assistia, entre o entusiasmado e o teme­roso, ao nascimento de um Estado que saudava um novo tipo de homem, um novo humanismo. Lenine estava no vértice, velando sempre, apesar dos acontecimentos se sucederem a uma velocidade estonteante. Os bolcheviques começavam a escrever a sua parte da História e era necessário dotá-la de sím­bolos, de imagens, de palavras. Os artistas, «engenheiros da alma», como os batizaria Estaline, meteram as mãos à obra enchendo a nova Rússia de ciência, técnica, livros e arte. (mais…)

      Artes, História

      Amendoim

      Muitos portugueses jamais viveram assim pois nasceram e cresceram num tempo de ilusória abundância. Mas quase todos eram pobres, ou então, como se dizia, remediados. A pobreza não era uma situação, era uma condição; não era uma circunstância, mas um estigma. Quem nascesse pobre não tinha outro horizonte que não o da pobreza, se não tivesse a sorte de encontrar um bom padrinho ou de acertar no Totobola. Em aposta simples, pois a múltipla saía cara. Já remediados eram quase todos, seguindo um padrão de vida que no entanto seria hoje o da pobreza. Tinham dinheiro para o essencial, se poupassem muito e não fizessem o que não deviam. Evitar o mais possível os cafés, os cinemas, os passeios e as noitadas, não fazer férias longe de casa ou jogar cartas a dinheiro, eram deveres essenciais para permanecer remediado e não baixar de nível social. Nem mesmo as crianças escapavam ao regime: tinham brinquedos baratos de lata, pano ou madeira, que passavam de geração em geração, compravam rebuçados de meio tostão e na Páscoa tinham um saquinho de amêndoas que deviam partilhar com os irmãos. Num dia especial, conseguiam um cone de caramelo tingido a corante e embrulhado em papel vegetal. Quando cresciam um pouco e começavam a desinteressar-se dos doces, passavam à pevide ou ao amendoim torrado, companhia rotineira de uma laranjada bebida com moderação. Gelados, só os feitos pelas mães. Matraquilhos, só com os escudos contados. E eram filhos de funcionários públicos, de professores primários, de quadros técnicos, de polícias, até de militares de patente baixa. Não eram filhos de operários, camponeses ou empregados de comércio, pois esses nem com tais frivolidades podiam sonhar. Se tudo acontecer como previsto e a sagrada Europa quiser, será a esse tempo que sem as devidas distâncias tornaremos em breve.

        Apontamentos, Democracia, Música

        Ninguém mais escreverá ao coronel

        Um parágrafo sobre o fim de Kadaffi. Toda a morte é lamentável e esta não o é menos. Observada daqui, em imagens horríveis, não deve alegrar ninguém. Já o mesmo não acontecerá, com toda a certeza, com quem viu pais, filhos, irmãos, amigos, presos, torturados e mortos sob o seu regime. E para quem o combateu, nesta fase definitiva, de armas na mão. Na guerra, e principalmente numa guerra civil, é muito difícil o perdão no momento do combate, pois trata-se de matar ou de morrer, e paira no ar um forte odor a vingança. Mas custa a entender que se possa condenar esta morte terrível sem condenar as outras que o morto assinou, só porque andam uns quantos aviões pouco inocentes a cruzar os céus em voo picado. Como custa a entender, lá mais adiante, o silêncio cúmplice diante dos milhares de mortos sírios de Bashar Al-Assad. O futuro agora é complexo, muitas e discordantes são e permanecerão as forças em presença, o petróleo líbio será sempre bastante tentador. A liberdade e a justiça, para os que vivem naquele país de pequenos oásis e um imenso deserto, fazem parte de um caminho longo e sinuoso, com troços intransitáveis, que apenas começou. Tudo está evidentemente por decidir. Teria sido melhor, é verdade, que o ciclo encerrasse de outra maneira. No entanto, assim o quiseram uns e os outros.

          Apontamentos, Atualidade, Olhares

          Os fantasmas descem à cidade

          «No começo não há sangue, os indícios são inofensivos.»
          (Hans Magnus Enzensberger, Perspectivas da Guerra Civil)

          A violência de rua está nas primeiras páginas. Em Atenas, Roma ou Madrid, ela emerge como manifesto visível dos protestos dos mais lesados pela crise artificial, rigorosa e prolongada que afeta as sociedades do sul europeu. Em Lisboa – como em Dublin, que não fica a sul mas para lá vai resvalando – o ruído de uma indignação agressiva e da chuva de pedras caindo sobre os escudos da polícia é ainda ténue, resultado provável de uma maior predisposição cultural para a resignação, mas quando o último dos limites for ultrapassado cá chegará também. Não se trata de uma paisagem agradável, embora ela seja provavelmente necessária, ou pelo menos compreensível, uma vez que a ausência de uma resposta forte e sonora apenas acentuaria a condição de impunidade que domina os responsáveis últimos por toda esta situação. Esta não é, no entanto, a pior das violências a temer, uma vez que será sempre episódica e localizada. O mal, o verdadeiro mal, está na diminuição brutal dos direitos que a Europa está a viver e no descrédito da democracia, produzindo todas as condições para que o uso da força seja mostrado como instrumento de salvação e, em consequência, para que comece a moldar-se um futuro sombrio no qual as liberdades serão limitadas e os cidadãos viverão iludidos e humilhados.

          Aproximam-se então dois cenários ainda há pouco considerados longínquos ou julgados impossíveis, apresentados como hipóteses académicas ou resíduos de um passado que pertencia apenas aos livros de História. O primeiro destes cenários subentende a emergência de um autoritarismo caracteristicamente conservador e de direita, de raiz populista, que apoiado no descontentamento dos cidadãos e no descrédito dos partidos tradicionais, possa tomar o poder através de eleições, destruindo depois o próprio regime, como aconteceu na Alemanha com a República de Weimar. Nada desta figuração se apresenta à vista desarmada, mas qualquer um percebe que, no presente momento, basta que apareça um nome e se reúnam algumas vontades para que a serpente saia do seu ovo. O segundo cenário não é, porém, menos dramático. Ele supõe o crescimento rápido de uma esquerda antiparlamentar, apoiada no entendimento da violência como «parteira da História» e nos velhos princípios do autoritarismo de matriz leninista, estruturalmente defensora da centralização do Estado e da repressão da divergência, observada sempre como «contra-revolucionária». Esta é uma possibilidade que, nas condições presentes, pode também ser imposta pelo voto de protesto anticapitalista da maioria dos cidadãos, de acordo com um panorama ainda há bem pouco tempo considerado delirante mas agora inteiramente plausível.

          Num e noutro dos casos, é sempre o espetro da força e da coerção, a redução compulsiva do pluralismo e dos direitos individuais, que em nome de urgências maiores, como a necessidade de pão para a boca ou a sobrevivência do Estado-Nação, nos ameaça. Não de longe, mas já aqui, talvez mesmo ao virar da esquina. Estão praticamente reunidas, como dirá a cartilha, as condições subjetivas para que ele apareça à nossa frente. Resta esperar pelas objetivas, que podem não tardar muito. O filme, que parece de terror, está a correr depressa, demasiado depressa.

            Atualidade, Olhares, Opinião

            Ódio ao funcionário público

            O mealheiro

            No texto anterior falei do medo, neste falo do ódio. Porque neste momento é ele que nos rege. Imposto por pessoas que já não partilharam os conflitos, os debates, as causas e as expectativas que cavaram o fim do regime velho, gente que desde o ninho fundou a sua estreita noção de democracia no menosprezo da solidariedade social. Menosprezo apoiado num padrão de autoridade imposto por um Estado apenas destinado a arbitrar a defesa do interesse individual, a vertigem do poder do dinheiro e da especulação financeira, a exploração desregulada do trabalho assalariado. Não um governo ao serviço do interesse coletivo, da dimensão partilhada da existência e de uma dignidade fundada na justiça e na equidade distribuídas sem outro limite que não o do esforço e do talento de cada um. São pessoas que odeiam em particular, com «ódio de classe» – sempre odiaram mas agora têm pretextos para o mostrarem sem restrições –, a noção de interesse público e, em consequência, a atividade dos milhões que por ele, ao longo de décadas, deram e continuam a dar o melhor do seu esforço. Dos que nele se formaram, para ele convictamente trabalharam, e, tantas vezes, por ele foram perdendo a juventude, o quinhão de felicidade que lhes cabia, até a saúde. O ódio ao funcionário público, o remoque populista ao seu lugar na sociedade, tornou-se assim uma das molas reais do discurso oficial e da capacidade decisória do atual governo. Não tanto no exercício do direito à crítica dos excessos e dos desmandos do funcionalismo – obviamente existentes e que sempre mereceram a censura e a retificação – mas devido à vinculação do padrão de atividade profissional dessas pessoas a uma noção de interesse coletivo, de desenvolvimento comum ou de desígnio nacional, que tais aprendizes de Milton Friedman apenas invocam quando serve os valores do seu universo mesquinho fundado na desigualdade. Mas será possível governar um país odiando, e em consequência humilhando, uma parte tão significativa dos seus cidadãos?

              Apontamentos, Atualidade, Opinião

              Unir a luta para mudar de vida

              Protesto

              Se excetuarmos os ricos, os néscios, os especuladores e a enfatuada babugem do poder e do sistema partidário que lucra sempre com a gestão da desgraça alheia, todos os portugueses – incluindo por certo os moradores no distrito do Funchal – acordaram hoje em estado de choque com as medidas do próximo Orçamento de Estado divulgadas por Passos Coelho. Não se tratou apenas de um golpe de tenaz sobre o poder de compra e até sobre a mera sobrevivência material da maioria da população, em particular a da outrora chamada classe média, propondo assim matar o doente com base na terapia escolhida. Nem foi só um exercício descarado de inabilidade política, revelando a incapacidade absoluta para apontar uma saída, uma escapatória, um gesto de ousadia capaz de deixar nos cidadãos, pelo menos, a presunção de que aquilo por que vão passar serve para alguma coisa. O discurso de Coelho foi sintomático da incapacidade para encontrar um caminho, ou sequer de conceber uma alternativa a ponderar, por parte de um universo político cobarde e pouco inteligente que só reconhece a administração daquilo que existe, desinteressando-se do caminho que leva ao que pode existir. Dito de outra forma: incapaz de perceber que a negra crise na qual mergulhámos de cabeça é uma crise de sistema, e que a única solução é mudá-lo. Não é deixar que nos afundemos levando connosco o melhor das nossas vidas.

              Mas a tragédia que estamos a viver não passa apenas pelo facto de quem nos gere ser atavicamente incapaz de outro estímulo que não seja o do pau e o da cenoura açulados por Frau Merkl e os seus cúmplices. Passa também por o setor em condições de criar uma outra possibilidade permanecer desde há largos anos incapaz de a pensar e de a propor, separando o essencial do acessório, com uma maleabilidade tática, uma consistência e uma força política e moral em condições de mobilizar os cidadãos. O protesto, naturalmente, é necessário, incluindo o protesto de rua que é nesta altura o único escutado por quem tem a faca e o queijo na mão. E por isso é importante que as manifestações deste sábado sejam concorridas e vibrantes, ainda que não se concorde integralmente com o discurso político que enforma algumas delas. No entanto, não adianta muito clamar contra a injustiça, bradar contra os ataques aos direitos das pessoas comuns – e não apenas «dos trabalhadores» – se não existe a possibilidade de, em termos práticos, definir uma plataforma de entendimento para a alternativa. Capaz, em consonância com uma forte opinião pública e um movimento social amplo e não-sectário, de apontar para uma saída credível. O pior de tudo, neste momento, não é apenas a aproximação do espetro da miséria e do estilhaçamento brusco da qualidade de vida da maioria dos cidadãos: é a ausência de esperança e do enunciar claro da probabilidade de uma saída. E aqui também os partidos, movimentos e correntes políticas críticos do neoliberalismo e dos seus desmandos têm responsabilidades. Eles têm sido incapazes de criar uma real alternativa, refugiando-se, desde há décadas, na mera política do protesto. Preocupados com a reivindicação e o combate pelo poder, mas não com uma larga convergência de objetivos e a sustentabilidade de um futuro solidário projetado para além do imediato e das fronteiras dos Estados. Ora como só a preparação deste futuro pode abrir uma clareira na floresta cheia de lobos e despenhadeiros na qual andamos às voltas, é tempo de mudarem de estratégia. E com a maior urgência.

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                Apontamentos, Atualidade, Opinião

                Memórias de um leitor #3

                Os Três Mosqueteiros

                Editado pela Bertrand em capa dura, eis o primeiro livro da colecção Histórias que me passou pelas mãos. Tinha a particularidade de conter o texto original de Dumas, mas também uma versão simplificada vertida em «quadradinhos». A coragem de D’Artagnan, o jovem gascão aventureiro e um pouco fanfarrão, era realçada pela sua oposição a figuras tão decididamente pérfidas como o antipático Cardeal Richelieu e a venenosa Milady. Um exemplo para qualquer rapaz de província desejoso de trespassar a vida a certeiros golpes de espada.

                  Apontamentos, Memória, Séries

                  Morenas de Angola

                  Riquita 1971
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                  Outros (e outras) poderão ter vivido semelhante experiência noutros lugares, quem sabe se até à porta de casa, mas nunca me cruzei com tantas mulheres tão perturbadoramente belas como naquele ano em Angola. Bonitas sem limite, de todas as cores, de todos os aromas, com corpos esplêndidos e um porte único. Capazes de «faire tourner la tête» e de deixar um sujeito parado na contramão atrapalhando o trânsito. Nos anos derradeiros do regime velho, aliás, certas beldades afro-portuguesas eram como um emblema usado para proclamar a dimensão planetária da pátria, disputando a glória e os favores públicos aos jogadores de futebol, aos fadistas, às estrelas do teatro revisteiro, aos ídolos do nacional-cançonetismo destacados na rádio, tv e disco (não havia ainda cassete pirata). Jornais e magazines de atualidades, os editados nas colónias mas também os da metrópole, transmutavam a mulher africana, e mais anda aquela cuja compleição resultava de uma mistura genética incutida pela mestiçagem, fosse ela negra assimilada, mulata, cafuza ou branca com sabor tropical, em ícone de um Portugal tórrido e multirracial, vestindo maillot, que começava na foz do Minho e seguia por aí afora, manejando as ancas num desfile que só deveria terminar nas praias de Timor.

                  Os concursos de misses eram, na época, momentos centrais desse esforço de transformação de forças da natureza em emanações morfológicas da identidade pátria que o regime inventara. Algumas fizeram até carreira na metrópole, onde, apesar do clima menos propício ao desabrochar dos corpos, as possibilidades profissionais eram maiores e mais aliciantes. Ainda assim, muitos viam já nesses concursos, para além de instantes de uma cultura predominantemente masculina que reconduzia a mulher ao papel de suave e subalterno adorno, a intervenção censurável da propaganda do regime na construção de um ideal de perfeição que tapava a realidade mais escura, nada bonita, nada dengosa, da situação da mulher sob o Estado Novo e o jugo do colonialismo. Custa por isso ver como, logo após as independências, os certames destinados a designar as misses isto-ou-aquilo se mantiveram como ocasiões de entretenimento das massas e de encenação da grandeza putativa – ditosa pátria que tais filhas gera! – de novos regimes mais ou menos despóticos. A recente aparição de Leila Lopes, a angolana consagrada Miss Universo 2011 em São Paulo, e sobretudo o estardalhaço feito em seu redor pelos propagandistas de Luanda, representam mais um momento dessa transformação da beleza feminina numa encenação buffa, e neocolonial, de um orgulho degradado.

                    Atualidade, Memória, Olhares

                    Edith 63

                    Edith

                    De repente, ao acaso de um post do Facebook, sobrevém uma das minhas reminiscências mais antigas e ao mesmo tempo mais cintilantes e imperecíveis. Associada a um sentimento de pena verdadeira pela perda de alguém que jamais conhecera. Na tarde do dia 10 de outubro de 1963, seguia por uma estrada secundária do norte geográfico no banco de trás do Carocha familiar quando o locutor de serviço da Emissora Nacional interrompeu a emissão para anunciar a morte de Edith Piaf. Passou de seguida «Non, je ne regrette rien» e eu, sem idade sequer para ter um passado e poder recusar o quer que seja, defrontei mudo a emoção instantânea, profunda e completa que consigo agora rememorar.

                      Apontamentos, Memória, Olhares

                      Próxima estação: Portugal?

                      Greece

                      Um fragmento da crónica de Clara Ferreira Alves – «Agora, estamos a enlouquecer» – saída hoje no suplemento Única do semanário Expresso. Não sei se o mail do amigo grego que cita é verdadeiro ou um mero artifício de cronista. Não importa, pois num caso ou no outro ele é demasiado real, confrontando-nos com um clima geral de desesperança, depressão e raiva que não augura nada de bom. Principalmente se as tentativas para encontrar uma saída continuarem a ser conjunturais, sem tino e sem norte. Desculpem se vos estrago o sábado.

                      «O que está a matar a Grécia é a incerteza, com a incerteza ninguém põe aqui um tostão. Querem que privatizemos mas quando privatizamos quem é que vai investir num país que é considerado, diariamente, perdido? As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».

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                        Tabaco da ilha

                        Charutos Churchill

                        Já aqui deixei há dias algumas notas sobre as razões que levarão Alberto João Jardim a ganhar de novo, eventualmente com maioria absoluta, as eleições para a Assembleia Regional que estão a decorrer. Nada tenho a acrescentar ao triste rol. Existe, todavia, um comentário adicional que importa fazer, tendo em consideração as sondagens que confirmam a tendência e a reação de muitos populares madeirenses a inquéritos de rua nos quais lhes perguntam o que acham das contas da região: os dados esmagadores que têm sido divulgados por entidades insuspeitas sobre a ocultação da dívida (não o excesso, pois esse não é exclusivo local, mas a ocultação) e o desvio sistemático de verbas das rubricas para as quais estavam previstas, aplicado ao longo de vários anos, muitas das vezes com a complacência medrosa do governo da República, não perturbam a esmagadora maioria dos eleitores de Jardim.

                        Lá como cá, a ausência em muitas cabeças de um sentido claro e solidário de cidadania, o desinteresse pelos conceitos de honradez e credibilidade na coisa pública, impõem que a malfeitoria, desde que usada em proveito próprio, seja transformada em gesto admirável, em prova de esperteza, e o malfeitor seja convertido em paladino dos beneficiados. De onde vem o dinheiro e por que processos foi obtido, ou de que forma e por quem vai ele ser devolvido com os respetivos juros, tal não importa desde que nos alarguem a estrada, nos componham o coreto, nos dêem um autocarro novo para levar os miúdos, nos arranjem uma ocupação remunerada para a prima ou para o cunhado. Quem sofre com isto é obviamente a democracia representativa tal como a concebemos. Sim, esse péssimo sistema do qual dizia o outro senhor, que também fumava charuto e governava uma ilha, ser ainda assim o menos mau dos sistemas. O mais negativo da ideia está porém em pensar que não pode haver melhor. E se calhar pode.

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                          O romance (e a realidade) do retorno

                          De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.

                          Dulce Maria CardosoA autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.

                          O RetornoE agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».

                          Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.

                            História, Memória, Olhares

                            O rapaz da maçã

                            Steve Jobs

                            Steve Paul Jobs (1955-2011). Para o bem (e para o mal, como sempre), deixou uma marca profunda, com toda a certeza duradoura, nas nossas vidas partilhadas. «Ser o homem mais rico do cemitério não me interessa», disse certa vez, «ir para a cama à noite a pensar ‘hoje fizemos algo de maravilhoso’ é que é importante para mim.» Foram poucos aqueles que puderam gabar-se de o terem feito tantas vezes antes de gastarem o seu crédito de vida.

                              Apontamentos, Etc.

                              Livros que não li (2)

                              Tagebücher. Band 1: 1910-1911, de Erich Mühsam (Verbrecher Verlag, 2011)

                              Erich MühsamErich Mühsam deve ser um dos mais celebrados anarquistas alemães. Talvez porque o ativismo político não foi mais do que um dos lados da existência rica e movimentada do poeta, dramaturgo, agitador, erotómano e feminista. A violência marcou-lhe o início e o fim da vida: a primeira, dizem, imposta por um pai despótico, a definitiva aplicada em Julho de 1934 pelas SS do campo de concentração de Sachsenhausen, em Oranienburgo. Nascido em 1878, Mühsam foi figura proeminente da República dos Conselhos, que, em 1919 tentou durante algumas semanas instaurar o socialismo na Baviera. No entanto, nem os seus poemas nem as suas peças lhe valeram reconhecimento literário. A grande obra, afinal, será o diário que começou a escrever em 1910 e que uma pequena editora alemã se propõe agora editar… em quinze volumes. As notícias que chegam dizem que Mühsam traça aí um retrato impiedoso de si próprio e do meio boémio e revolucionário de Munique.

                              O destino rocambolesco deste texto é, diga-se, digno da vida agitada do seu autor. Após o assassinato de Müsham pelos nazis, Creszentia Elfinger, a viúva, levou o enorme manuscrito para Moscovo. Mal o leram – estávamos em plena época das Grandes Purgas – as autoridades soviéticas confiscaram-no e enviaram a sua fiel depositária para o Gulag. É preciso dizer, em abono da proficiência dos agentes do NKVD, que alguns passos do texto arranhavam os «fantoches marxistas de Moscovo». Após a morte de Estaline, Elfinger, que depois de libertada passaria a viver em Berlim-Leste, tentou obter pelo menos uma cópia. Mas a que foi feita não foi lhe foi entregue: microfilmada, foi confiada aos apparatchiki do Partido Socialista Unificado da Alemanha (autoproclamado comunista), que a conservaram longe de olhares indiscretos por mais de vinte anos. Em 1978 fez-se ainda uma edição lacunar, mas se não existirem mais percalços ficar-se-á a dever apenas à Verbrecher Verlag a edição integral, que se prevê concluída no outono de 2018, do longo diário de um regressado Müsham.

                              Este post é bastante devedor de uma notícia saída no no. 26 do mensário francês Books.

                                História, Olhares