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Nós em números

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Quem pretenda reduzir em menos de cinco minutos à completa insignificância os comentários dos sobreviventes do antigamente, ou das criaturas dos pós-Abril que não sabem do que falam, sobre como era digna e «melhor» a vida no Portugal de Salazar e Caetano, deve ter por perto um pequeno livro que chegou há pouco às livrarias. Refiro-me a Portugal: os Números, de Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, uma edição de capa dura da Fundação Francisco Manuel dos Santos à venda por apenas 5 euros. Começa assim:

«Se por algum exercício de ficção os portugueses de hoje acordassem no ambiente do início dos anos 60, sobretudo junto ao litoral e nas grandes zonas urbanas, sentir-se-iam bastante desconfortáveis e, por certo, com uma enorme estranheza em relação a tudo o que acontecia em seu redor. Era o seu País – mas irreconhecível.»

O livro fornece números, mas apenas os essenciais. Existem dados mais completos disponíveis noutros locais e o objectivo dos autores não é repeti-los, mas sim «descortinar tendências globais da sociedade portuguesa». Aquilo que deixam à vista em pouco mais de 100 páginas é, de facto, um país radicalmente outro, incomparavelmente melhor e mais feliz. E um movimento de mudança que em menos de cinquenta anos – ou de quarenta dado o facto da maioria das transformações ter ocorrido já após o 25 de Abril – o transfigurou. Os dados reportam-se à evolução demográfica (incluindo a emigração e a imigração), ao crescimento do Estado social (com destaque para as alterações no campo da educação, do conhecimento, da cultura, da saúde e de protecção social), à evolução do trabalho e dos rendimentos, às alterações no campo da justiça, às novas tendências no domínio da família e dos modos de vida.

Alguns dados são particularmente esmagadores: entre 1960 e 2008 a permilagem da taxa de mortalidade infantil desceu de 77,5 (a pior entre os 27 países da actual União Europeia) para 3,3 (a sexta mais baixa); a esperança de vida subiu dos 60,7 e 66,4 (homens e mulheres) para 75,5 e 81,7; entre 1972 e 2008 o orçamento do Estado para as funções sociais passou de 1,9% do PIB para 16,4%; a população com 15 ou mais anos sem escolaridade passou de 65,6% em 1960 para 9,2% em 2001; o ensino médio e superior subiu em flecha; entre 1960 e 2003 o número de livros nas bibliotecas públicas passou de 5,4 milhões para 32,2 milhões, tendo estas passado de 89 para 1.018; sensivelmente pelos mesmos anos o número de museus subiu de 96 para 300; os médicos e enfermeiros de 188 para cerca de 900 por cada 100.000 habitantes; os pensionistas da segurança social passaram de 120 mil para quase 3 milhões; o público de espectáculos ao vivo subiu de 161 mil em 1960 para mais de 6 milhões em 2008.

Claro que muitas assimetrias e problemas se mantêm, sobretudo no plano dos rendimentos e da igualdade entre homens e mulheres, e nem todos os factores apresentados podem ser considerados necessariamente positivos – por curiosidade e sem qualquer juízo de valor, a percentagem de divórcios aumentou de 1,1 por cada 100 casamentos, em 1960, para os actuais 61%, enquanto os casamentos foram reduzidos a metade –, mas não existe comparação possível e, por isso, possibilidade alguma de pactuar com a mistificação lançada pelos vultos que habitam as sombras ou pelos seus ignaros herdeiros.

    Atualidade, História, Memória, Olhares

    Mrs. Peel

    Mrs. Peel

    Diana Rigg faz hoje 72 anos. Nunca foi uma star, nove em cada dez, das que entravam em banheiras cheias de espuma para anunciarem o sabonete Lux, mas a partir de certa altura foi Emma Peel, a companheira pró-activa e multitarefas do agente John Steed na série de televisão The Avengers, Os Vingadores, rodada entre 1961 e 1969. Steed era um agente do MI6 com aspecto de inglês «típico»: chapéu de coco, fraque sem ruga, um inseparável guarda-chuva muito bem enrolado e a omnipresente dose de fleuma. Já Mrs. Peel destoava da tradicional ajudante, sedutora, um tanto tola e absolutamente secundária na trama das outras séries. Pelo contrário, o trabalho pesado – socos, cabeçadas, fugas impossíveis, activação de engenhos explosivos e uns quantos tiros bem aplicados – ficava sempre por conta da agente em roupa futurista de cabedal negro, dotada de vastos conhecimentos de karaté e praticante de elevado nível de boxe tailandês. Aqui residia, aliás, o ineditismo da série, a sua marca caracteristicamente sixtie e vagamente feminista (Barbarella, a série de BD e o filme de culto, foram contemporâneos dos Vingadores). Talvez por isto a série de televisão se tenha tornado rapidamente popular. Diana Rigg foi também uma fugaz «Bond girl» e a madrasta má numa versão da Branca de Neve, mas será para sempre a intrépida – e  por isso singularmente sexy – Mrs. Peel.

    Duas adendas em vídeo: Mrs. Emma Peel + Emma Peel in tight leather catsuit…

      Devaneios, Ficção, Memória, Olhares

      Memória de um coxo

      sapatos

      Nas últimas noites tenho encerrado a jornada lendo algumas páginas da colectânea de crónicas de Manuel António Pina que acaba de sair (Por outras palavras, edição da Modo de Ler). A maioria delas já eu tinha lido, no exacto lugar ao qual foram originalmente destinadas. Sou, aliás, leitor contumaz de tudo aquilo que o escritor escreve, sempre na tentativa gorada de encontrar uma palavra, um juízo, uma atitude que me desgoste, que ache deslocada, ou da qual me sinta suficientemente distanciado para poder testar a vontade física, que mantenho desde que me conheço e já me apontaram (provavelmente com razão) como doentia, de descobrir defeitos na perfeição. Será, por isso, escusado dizer que recomendo, e muito, estas trezentas e tal páginas, garantindo que, se sinto os olhos a fecharem ao fim de uma dúzia delas, é só porque geralmente já passa das três da manhã.

      Este post não é, porém, sobre o livro de Manuel António Pina. É sobre uma sua evocação, nele contida, que me tocou de repente a memória. Lembra Pina, numa crónica de 2003, a propósito de um encontro breve mas inesquecível com o poeta Ruy Belo, uma manifestação estudantil na Baixa do Porto «contra a Queima das Fitas». Não sei o que pensará hoje a maioria dos estudantes universitários de tal evocação e da importância que ela teve para um certo padrão de resistência ao velho Estado Novo. Admito que seja algo de estranho. Como alguém contar que um dia vibrou com os golos de Figueiredo ou que a sua primeira erecção oficial foi instigada por um fotograma de Silvana Mangano em Riso Amaro. Mas posso garantir que não se trata de sinal de confusão da memória: participei em Maio de 1972, mais a sul, numa manifestação contra uma tentativa de reposição da Queima das Fitas por parte de uns quantos cidadãos próximos da direita extrema. Como poderia esquecer-me se nessa tarde, ao fugir da polícia que carregava sobre os estudantes, perdi um sapato e tive de regressar a casa por becos ínvios, procurando esconder o melhor que podia aquela propensão súbita para coxear um pouco?

        Memória

        Papéis Roubados #1

        Uma nova série que se espera de vida longa e com alguns sobressaltos. Sempre com as palavras dos outros. A abrir um notável artigo de Antonio Muñoz Molina sobre a construção da memória apócrifa e o mau serviço que ela presta.

        Holocaustos para todos
        Antonio Muñoz Molina

        Antonio Muñoz Molina

        «Babelia», El País -10/07/2010

        Habíamos estado presentando en Nueva York un libro de Marcel Cohen y cuando llegó el momento del coloquio un espectador levantó velozmente la mano. El libro de Cohen, que tiene la forma de una larga carta a su amigo Antonio Saura, es una memoria lacónica y estremecedora de una pérdida doble, la de la lengua judeoespañola que Cohen aprendió a hablar de niño y la de la comunidad sefardí de Salónica, de la que procedía su familia, y que fue virtualmente borrada del mapa por los nazis. El libro, en inglés y en judeoespañol – In Search of the Lost Ladino – lo había publicado en Jerusalén la diminuta editorial Ibis, que difunde por igual a autores judíos y palestinos, con una vocación más bien heroica de buscar lazos comunes en una época y en una tierra cada vez menos propensas a la concordia. Cuando yo vi a Marcel Cohen, después de haber leído el libro, que para mí tenía además la emoción del recuerdo de Antonio Saura, me acordé de ese dictamen de Buffon según el cual el estilo es el hombre. Marcel Cohen, como su escritura breve e intensa, tenía una presencia discreta, exquisitamente amable, de una inmediata cordialidad emocional contenida por el pudor. Era un hombre delgado, elegante, menudo, de rasgos muy óseos y piel muy morena. Cuando terminó de hablar miró al público y se inclinó ligeramente para aceptar la pregunta de aquel espectador tan lleno de impaciencia por intervenir que se movía en el asiento y seguía agitando la mano levantada como si temiera no haber sido visto, o que por algún motivo se le negara la palabra.

        La Montaña
        O fotograma

        – No sabe usted cómo le comprendo – dijo -. Soy catalán, y los catalanes también hemos sufrido un genocidio.

        Aquel señor había estado escuchando la historia de la deportación en masa a Auschwitz de los judeoespañoles de Salónica y de lo fácil que es borrar un idioma mediante el procedimiento de asesinar a quienes lo hablan, y en su celo patriótico no había querido ser menos: lo que Hitler les hizo a los judíos de Salónica se lo hizo Franco a los catalanes y a su lengua. ¿Y quién iba a argumentar que la comparación era disparatada, o más exactamente obscena? Si uno levantaba la mano y sugería que Franco no había sido Hitler, y que el sufrimiento de los catalanes bajo su dictadura, con perdón, no podía calificarse de genocidio, ¿no estaría uno en el fondo justificando a Franco, sugiriendo que su dictadura en realidad no había sido tan terrible? Por no hablar de otro matiz algo más incómodo, porque tiene que ver con la sagrada integridad de las identidades colectivas, y con los campeonatos por la primacía del sufrimiento que se han puesto tan de moda: ¿sufrieron todos los catalanes por igual, o hubo algunos que apoyaron la dictadura y hasta se beneficiaron de ella, mientras otros eran fusilados, penaban en las cárceles o escapaban al exilio? ¿Y sufrieron más los catalanes que los de Jaén, o los de Murcia o Zaragoza, bien porque al ser más cultos tenían más sensibilidad, bien porque el tirano y sus secuaces se cebaban especialmente con ellos?

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          História, Memória, Olhares, Recortes

          Problemática albanesa

          Hoxha

          Depois do post anterior sobre Ismail Kadaré e (um pouco) sobre o seu último livro, retorno à problemática albanesa, uma vez que esta não me sai da cabeça. Não por ser problemática, mas por ser albanesa. Acontece que sempre me pareceu profundamente injusta a menorização – por comparação com o impacto do exemplo chinês – da influência do «país das águias» na projecção, à gauche do PCP, de uma alternativa ao regime caduco do «Salazar que ri», como alcunhava o povo a Marcello Caetano. Mas a verdade é que para muitos marxistas-leninistas-maoístas, esvaziada por uma vez a Grande Revolução Cultural chinesa, Enver Hoxha é que estava a dar. E se ninguém se proclamava hoxhista era só porque a palavra soava mal e podia prestar-se a confusões pouco conciliáveis (ou talvez não) com a moral proletária. Muitas horas de nocturno descanso foram consumidas a ouvir a onda curta, vociferada em português do Brasil, que começava assim: «Aqui Rádio Tirana, voz do Partido do Trabalho da Albânia e do marxismo-leninismo, a sua doutrina sempre jovem e científica». Ao que se seguia invariavelmente uma versão bastante singular da Internacional, umas frases do camarada Hoxha «sobre a situação política mundial», as últimas novidades da guerrilha do Araguaia e 15 minutos de música folclórica do distrito de Gramsh, província de Elbasan.

          No que me toca, a problemática albanesa teve ainda um outro impacto, associado a um certo virar de página. Em Abril de 1977 veio a Portugal uma delegação do Partido do Trabalho da Albânia – episódio já mencionado pela Ana Cristina Leonardo na sua Pastelaria –, destinada a ornamentar o primeiro comício público do PCP(R). Num último assomo de convicção pessoal na força da tal «doutrina sempre jovem e científica», ainda fui de camioneta até ao comício no Campo Pequeno para saudar os camaradas albaneses. O momento parecia festivo: muitas bandeiras vermelhas, faixas com palavras de ordem como «os ricos que paguem a crise» e «abaixo a democracia burguesa», música do GAC, julgo que também alguns retratos de Estaline, de Mao e do camarada Hoxha. Mas a festa esmoreceu rapidamente com a entrada em cena da delegação albanesa: um pequeno grupo de idosos de rosto impassível, com chapéus à Al Capone, lenços de Cachemira impecavelmente dobrados no pescoço à maneira dos galãs dos anos 40, e enormes sobretudos cinzentos a contrastarem com o sol de Abril, que conservavam abotoados enquanto batiam palmas daquela forma compassada e aborrecida que podemos observar agora no You Tube. Uma viagem no tempo em forma de pesadelo. E nós que tanto desejáramos encontrar antigos guerrilheiros de porte enérgico e uniforme de partisan, se possível de cartucheira a tiracolo, prontos a esmagar «o imperialismo e o social-imperialismo», empenhados em dar-nos a força da qual tanto precisávamos para resistir à longa ressaca do 25 de Novembro! Creio que o meu entusiasmo esmoreceu logo ali um bom pedaço. E meses depois tinha-me convertido num «independente de esquerda» um tanto problemático. Graças, em parte, à falta de graça dos camaradas albaneses. A juventude não perdoa. Na época dir-me-iam que a «ideologia de classe» também não.

            Devaneios, Memória, Olhares

            O viajante albanês

            Ismail Kadaré

            Ler romancistas russos, ainda que estes tivessem escrito e publicado na era pré-soviética, já foi neste canto da Europa um acto de resistência. Não parece ter sido possível, mas a verdade é que aos catorze anos devorava Turgueniev, Gogol, Dostoievski ou Tolstoi no convencimento de ler autores proibidos. Ou pelo menos perigosos. Apesar do mais novo de todos eles, precisamente o autor de Guerra e Paz, ter morrido em 1910, quando Lenine ainda passava temporadas a transportar a bagagem e os apontamentos entre Paris e Praga. Algum tempo depois vivi algo parecido com Ismail Kadaré, o mais conhecido escritor albanês.

            Na minha ignorância, pelos meados dos anos setenta li o seu primeiro romance, O General do Exército Morto (de 1963; traduzido para o francês em 1970), convicto de estar a fazer um merecido favor aos interesses do país do camarada Enver Hoxha, que à época tomava por uma águia. Justamente, soube-o só bastantes anos depois, quando Kadaré tentava conciliar a sua obra, nada subversiva mas também nada conformada aos cânones do realismo socialista, com a capacidade que o regime tinha de a tolerar. O escritor recordava-o há meses ao Nouvel Observateur: «Se você fosse reconhecido, tornava-se uma figura hostil. Porque era senhor num reino, o da literatura, que não era aceitável por um regime autoritário. Você era como um contrapoder que era preciso destruir. Ou então perdia a sua autoridade tornando-se um escritor ridículo, servil, e nesse caso o poder aceitava-o». Aquilo que Kadaré a dado momento fez, como ele próprio reconhece, foi de certo modo degradar-se, tentando demonstrar ao Estado que dele nada tinha a temer. Em retribuição, o governo deixava-o levar uma vida dúplice, passeando pelo mundo a sua reputação de escritor de talento, mas regressando regularmente à sua «vida estalinista» decorrida entre Tirana e a Gjirokastër natal.

            Em 1990 fartou-se, refugiando-se em França antes ainda do socialismo albanês colapsar. Regressou apenas em 1999. Acusado algumas vezes de ter colaborado com as manobras dos seus compatriotas estalinistas, defendeu-se afirmando, noutra entrevista, que «a dissidência era uma atitude que ninguém podia tomar, ainda que por apenas alguns dias, sem correr o risco de enfrentar um pelotão de fuzilamento», mas considerando, apesar disso, que os seus livros tinham constituído «uma forma muito óbvia de resistência». Sem conhecer o suficiente da vida, da obra e sobretudo das atitudes cívicas de Kadaré para poder ter uma qualquer certeza a este respeito, uma coisa posso, todavia, garantir: que o seu último romance, Um Jantar a Mais, agora editado pela Quetzal, tem a forma de um claríssimo e tragicómico libelo contra o lado perverso do regime de «democracia popular» sob o qual teve de viver a maior parte da vida. Evocando o seu rosto intolerante, violento, persecutório, contra o qual, agora em liberdade, se afirma agora sem margem para dúvidas. Um belo pequeno romance, já agora. Como seria de esperar – embora estas coisas precisem sempre de confirmação – de alguém com o longo e reconhecido trajecto literário do autor. [Ismail Kadaré, Um Jantar a Mais. Quetzal. Trad. de Ana Cristina Leonardo. 176 págs.]

            «A entrada em cena de dois juízes incumbidos do inqué­rito cortou rente a vaga de especulações. Chamavam-se Shaqo Mezini e Arian Ciu, ambos naturais da cidade e regressados de fresco de Moscovo, onde tinham acabado de se diplomar pela Escola de Administração Interna Dzerjinski. Os seus ros­tos eram pálidos, o nó da gravata bem apertado, os sobretudos estranhamente compridos (dizia-se que o chefe da polícia secreta de quem a escola moscovita herdara o nome usava um capote do género, atribuindo-se-lhe também estas proverbiais palavras: o comprimento do vosso capote será inversamente proporcional à vossa piedade…).»

              História, Memória, Olhares

              Lembrar Terezín

              Terezín

              Em Terezín, uma localidade checa que cresceu à volta de uma fortaleza mandada construir a 60 quilómetros de Praga, em 1780, pelo imperador José II, Hitler fez erguer «uma cidade para judeus» que pretendia modelar. O seu objectivo continha uma dupla face: por um lado, a cidade servia para mostrar, às autoridades dos países neutrais ou a alguns aliados dos nazis que pudessem mostrar-se mais sensíveis às primeiras informações sobre a natureza da Solução Final, a forma como os judeus viviam bem sob a protecção de um «benevolente» Terceiro Reich; por outro, permitia a concentração de mão-de-obra particularmente qualificada, uma vez que os judeus destinados a habitar a cidade, agora baptizada Theresienstadt, eram em regra pessoas com uma formação superior. Muitos deles eram músicos, actores, artistas, escritores, jornalistas, ou membros destacados de organizações políticas entretanto ilegalizadas. Logo, pessoas perigosas mas «apresentáveis» e temporariamente úteis. (mais…)

                Democracia, História, Memória

                Os pequenos lusitos e os seus netinhos

                viarco

                Ia falar a propósito disto. Eis senão quando isto me tirou as palavras da boca. Convém pois não confundir representação com apologia. E não podem existir passados-tabú. Devemos sempre, sem dúvida, permanecer atentos aos processos de branqueamento de Oliveira Salazar e do salazarismo, mas o Estado Novo aconteceu e a sua evocação não pode nem deve permanecer circunscrita aos estudos históricos, aos congressos académicos e à memória selectiva daqueles que perseguiu. Isso sim, pode fazer crer às gerações mais recentes que «o fascismo nunca existiu», que não passa de uma fábula às voltas nas cabeças de uns quantos. Digo-o eu, que já cantei diariamente o Hino dos Lusitos – «Somos pequenos lusitos / mas já firmes e leais / amamos e respeitamos / nossos chefes, nossos pais» – e desenhei casinhas modestas e lindos campos de flores com lápis Viarco. Sem grandes danos colaterais, julgo.

                  Atualidade, História, Memória

                  Sete fôlegos e uma memória

                  Álvaro Cunhal

                  O livro de Carlos Brito sobre os mais de trinta anos ao longo dos quais manteve um convívio muito próximo com Álvaro Cunhal encontra numa frase costumeira do antigo secretário-geral do Partido Comunista Português – «no Partido não há amigos, somos todos camaradas» – um sinal do seu valor mas também dos seus inevitáveis limites. O essencial da obra comporta um relato histórico bastante pormenorizado da evolução táctica e estratégica do PCP sensivelmente entre 1966 e 1999, tendo Cunhal como principal intérprete e o autor como participante e testemunha em lugar privilegiado. É aqui que Carlos Brito vai detectando os «sete fôlegos revolucionários», os sete momentos de decisiva e construtora intervenção teórica do seu camarada de tantos anos, fornecendo alguns dados preciosos para uma percepção complexa da actividade dos comunistas durante os últimos tempos do Estado Novo, ao longo do biénio revolucionário de 1974-1975 e na fase de fixação da democracia parlamentar. Trata-se, naturalmente, de uma observação obrigatoriamente parcial, mais centrada numa leitura subjectiva dos acontecimentos do que numa análise comparativa de posições, que diferentes testemunhos poderão contestar ou corroborar. Mas trata-se também de um olhar em primeira mão, e por isso excepcionalmente rico, embora em alguns momentos, como seria natural após tantos anos de militância em cargos de responsabilidade partidária, o autor não saiba furtar-se à consabida «língua de pau» da ortodoxia, factor sempre impeditivo de uma perspectiva analítica mais ousada e, neste caso, também de uma leitura ainda mais agradável. É esta, essencialmente, a abordagem do «camarada», aquela que mais interessante se pode tornar do ponto de vista histórico. Já a perspectiva intimista revela-se demasiado contida e marcada por uma exposição continuada ao magnetismo único de Cunhal que não parece ter sido esbatida pelas crescentes divergências vividas nos últimos anos de mútua relação. Naturalmente, do conjunto destacam-se os contornos extraordinários desse «camarada Álvaro» – na sua personalidade rara, nas suas convicções e na sua combatividade, tal como nos recorrentes tiques e inevitáveis fraquezas – que conquistou a pulso um lugar ímpar na história do século vinte português. Voltarei mais adiante a este livro. [Carlos Brito, Álvaro Cunhal – Sete fôlegos do combatente. Nelson de Matos, 384 págs.]

                    História, Memória

                    Dennis

                    Morreu hoje o Dennis Hopper (1936-2010). O Goon de Rebel Without a Cause (meninos jornalistas, em Portugal chamou-se Fúria de Viver, no Brasil Juventude Transviada). O fotojornalista do Apocalypse Now. O pai de Mickey Rourke em Rumble Fish. O Frank Booth de Blue Velvet. Mas para mim, principalmente, o Billy de Easy Rider. Em cima daquela mota, por interposta pessoa, vislumbrei um dia outra vida. Quanto à vida dele parece que Dennis passou por ela muito bem, obrigado. Intensamente, como é preciso.

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                      Apontamentos, Cinema, Memória

                      Pequenos pequenos nadas

                      Brel e Gitanes

                      Depois do anterior post sobre o desaparecimento dos cigarros Gitanes do mercado, recebi uma dezena de mails sobre o assunto. Chegaram todos de pessoas que não conheço do mundo material, nem elas a mim, com as quais jamais me cruzei, mas que se aproximaram na tristeza solidária e na revolta por verem desaparecer esse momento especial que era ao mesmo tempo um hábito e um ritual. Agora eclipsado por troca com sensaboria normalizada de um tabaco claro e sem alma. Num dos mails recebidos evocava-se um aspecto crucial que me escapara no post: «aquela sensação de ter um Gitanes no meio dos dedos, dada a sua espessura única». É realmente verdade que essa ausência pesa também: aquele milímetro a mais de circunferência, suficiente para conferir ao momento uma robustez que se impunha na experiência do fumador e na forma como este concebia o seu lugar social, vincando a margem de diferença em relação aos vulgares consumidores de tabaco light. E como são importantes para nós, certas vezes, estes pequenos pequenos nadas.

                      Jacques Brel, fumeur de Gitanes – J’en appelle
                      PLAY

                        Apontamentos, Etc., Memória, Música

                        O PCP e a deserção

                        Guerra Colonial

                        Por causa da escusada tirada de Manuel Alegre sobre a sua honradez militar, voltou a discutir-se o papel da deserção e dos desertores na resistência ao regime salazar-marcelista e à Guerra Colonial. A posição da chamada esquerda radical é conhecida e, com ténues variantes, traduziu-se na recusa completa ao embarque para África. Já a do Partido Comunista Português foi menos linear. Politicamente coerente com a linha unitária do partido, em última instância ela remetia – e há notícias de que tal realmente aconteceu – para situações pessoais muito complexas. Compreender-se-á o que quero dizer pela leitura deste post. Fica aqui um fragmento da minha intervenção sobre o tema («As esquerdas e a oposição à Guerra Colonial») no II Congresso sobre a Guerra Colonial que decorreu em 2001 no Seixal, com organização da Universidade Aberta. Tem pois cerca de dez anos e já foi completado por investigação posterior, mas no essencial mantém-se actual. Retirei as notas e cortei partes que aqui são menos relevantes. O post é longo e num registo algo académico inabitual neste meio, mas vale a pena evocar estes episódios para diluir mal-entendidos.

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                          História, Memória

                          Meu querido fumo azul

                          Gitanes

                          E pronto, morreu um pouco mais da França que amei. No princípio da semana, repeti o hábito pendular de há uns vinte anos: saí de manhã, bem cedo, e fui à tabacaria comprar o meu pacote de dez maços de Gitanes. Fumo sem vício e pouco, mas por isso mesmo gosto de fumar bem, tabaco que se sente, forte e com personalidade, que arde devagar e se cheira à distância. Abalancei-me por algum tempo ao Celtiques – julgo que por causa de uma canção de Léo Ferré –, mas como amargava e me amarelava os dedos, retornei às caixinhas azuis com a cigana dançarina em silhueta.

                          Na loja, a empregada perturbou-me quando disse que entretanto tinham deixado de receber a marca. Como percebeu logo que eu tinha ficado aflito, sugeriu que passasse a comprar Ducados, ou talvez Gauloises, pois fora isso «que os outros clientes fizeram». Ainda pensei que se tratasse de um equívoco, de incompetência ou de maldade, motivados por razões obscuras que não tentei averiguar. Não era o caso, infelizmente: fui a outra tabacaria, e depois a outra, e a outra ainda, e depois a um armazém de distribuição, mas todos disseram o mesmo: «sabe, lamentamos mas essa marca deixou de ser distribuída», procurando logo esclarecer-me sobre aquilo «que os outros clientes fizeram».

                          A ver a vida a andar para trás, fui a correr ao Google. E sim, lá encontrei a notícia, pelas barbas cheias de nicotina de todos os grandes fumadores:

                          «Production in France recently halted, with one factory remaining operational in the Netherlands. This is mainly due to the rise on tobacco levies imposed by the French government in the wake of health advice, which has forced the price of French cigarettes up to the level of those from the USA, with the more aggressively promoted brands such as Marlboro now taking the majority market share.»

                          Quer isto dizer que não só uma das imagens de marca (literalmente) da França contemporânea vai desaparecer – logo ela, que até serviu de capa ao belo elogio do cigarro como experiência estética que é Cigarettes are Sublime, o livro de Richard Klein onde se explica que o maço de Gitanes funciona com «um emblema de beleza» e de «poderoso charme» –, como tal se deve à irracionalidade do fundamentalismo antitabagista europeu e à ginástica dos bosses da indústria americana do tabaco, que assim vêem chegar uma nova clientela.

                          Morrem assim de novo, agora provavelmente de vez, Serge Gainsbourg e Jacques Brel (cada um consumia sem pestanejar cinco caixinhas azuis de tabaco enrolado por dia), Jacques Prévert, Jean Gabin, Albert Camus, Luis Buñuel, John Lennon e Jim Morrison. E a bem dizer também eu morri um pouco. Pois, como o Gainsbourg, «sans elles [les gitanes] je suis malheureux».

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                            A força da memória

                            memória

                            De acordo com um inquérito divulgado pelo diário online Público.es, três em cada cinco cidadãos espanhóis querem que os crimes do franquismo sejam investigados e não fiquem impunes. Uma boa resposta à perseguição judicial revanchista movida contra o juiz Baltasar Garzón. A notícia pode ser lida aqui.

                              História, Memória