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Margem de outra maneira

Edifício Foice e Martelo
Edifício Foice e Martelo, de Yakov Chernikhov (1933)

O Zé Neves publicou no 5 Dias um excelente post onde contesta algumas reacções ao clima cinzento e aprazível no qual decorreu o «frente-a-frente» televisivo – as aspas são minhas – entre Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa. Focaliza a sua crítica nas posições, diferentes entre si mas coincidentes no teor negativo da apreciação, enunciadas por Miguel Vale de Almeida, por Daniel Oliveira e por mim, entendendo que, ao partilharem um «sentimento anti-PCP», todas elas tendem a limitar bastante as vias do possível para arquitectar o futuro da esquerda em Portugal.

As posições de MVA e de DO parecem ter, nos comentários do ZN, uma natureza mais táctica e causal, e provavelmente terão, uma vez que resultam de preocupações mais imediatas, mas a crítica que me é feita levanta problemas a propósito dos caminhos da esquerda num presente projectado para além do momento eleitoral. Nesta direcção, ZN salienta que a defesa que faço da necessidade de um esclarecimento das divergências e das diferenças entre o Bloco de Esquerda e os comunistas expõe uma «pulsão anti-PCP» que pode indiciar também «uma pulsão anticomunista tout court». Apesar de comigo concordar sobre a necessidade «em romper radicalmente com o legado do marxismo-leninismo». Debater de uma forma aprofundada a justeza ou os sentidos que esta apreciação incorpora é tarefa impossível de concretizar nos cinco parágrafos deste post, e evoca problemas mais densos que tenho tocado aqui e ali, aos quais procurarei regressar noutra altura, mas não quero deixar de dizer alguma coisa sobre a forma como o ZN leu as minhas palavras.

Talvez valha a pena sublinhar entretanto que o facto de votar BE, e de apelar a que outros o façam, não implica vínculo algum que me leve a ocultar objecções a algumas das suas escolhas. Como não significa que as minhas posições sejam admissíveis no interior do próprio Bloco. Longe disso, eu sei. Não sou militante bloquista, mas um cidadão de esquerda sem partido, e não concebo uma independência militante de outra forma que não seja como uma posição, um posto de franco-atirador, que liberta quem os assume para uma capacidade crítica mais improvável em quem, participando de uma organização partidária, se vê geralmente forçado a conformar as suas posições públicas com as da sua facção. Por isso os meus pontos de vista não visam defender qualquer estratégia eleitoral opcional para o Bloco – para isso, como partido democrático, tem o BE os órgãos e as pessoas competentes –, mas procuram apenas, mais prosaicamente, lançar pistas para uma reapreciação do futuro da esquerda. De uma esquerda que está aquém e além de atitudes, estritamente conjunturais, vinculadas ao episódio eleitoral.

Tendo uma visão humanista, solidária e poética do comunismo, integradora de uma carga utópica vital sem dúvida démodée e assumidamente a-científica, sei que ela não se compadece com a perspectiva realista e instrumental que algum marxismo, e sobretudo o leninismo, impuseram e aplicam com base no modelo que em determinado momento do século passado se presumiu triunfante. Sou por isso, sem dúvida, opositor ao tipo de comunismo que o PCP, e também uma boa parte da fragmentada esquerda radical supervivente, persistem em incorporar, na sua matriz política, cultural e até vivencial, como caminhos pelos quais ainda passará o futuro da esquerda da qual se consideram a parte perfeita. Nessa matriz programática resiste o anacrónico desejo de um controlo integral da sociedade, de uma manipulação redentora do indivíduo como subordinado à ditadura do colectivo, de clarificação centralista do que é ou não socialmente aceitável, da metamorfose da divergência em dissídio pela via do rancor (o desusado «ódio de classe»), de simplificação de um universo cada vez mais complexo, que não é meramente retórica. E não estou com problemas de visão. Ao mesmo tempo – não me parece que esse aspecto seja de importância menor – existe uma cumplicidade em relação aos caminhos mais tortuosos e dramáticos da história da experiência do «socialismo de Estado» que não me parece aceitável, é injusta para a memória daqueles que destruiu (não falamos de mil, ou dez mil, e ainda que falássemos de dez…), e questiona de raiz o próprio conceito de democracia. Por isso jamais aceitaria – como o fariam muitos portugueses que votam e votarão BE – pactuar ao nível da governação do meu país com uma força política que ainda desculpabiliza, quando não elogia, as atrocidades sem fim do Gulag, que cala os atropelos brutais à democracia e aos direitos humanos na China, que justifica a repressão na mitificada Cuba, que tem da justiça, da liberdade, da ética, da guerra e da própria democracia uma noção instrumental que é maleável na exclusiva medida em que essa maleabilidade convenha tacticamente aos seus objectivos operacionais subordinados ainda a uma espécie de irredentismo histórico.

Isto não implica, porém, a recusa de colaboração com os comunistas do PCP no plano do combate diário por causas próximas. Ela é comprovadamente e recomprovadamente difícil, mas não impossível. Não impõe também, de modo algum, a negação da grande tradição solidária e memorável que a história do movimento comunista português e internacional nos tem doado. Mas essa inesquecível grandeza não é tão forte que nos leve a fechar os olhos e a admitir, agora e aqui, uma solução governativa feita daquela espúria miscelânea. Por isso me parece que o Bloco, que incorpora, mesmo ao nível da simpatia traduzida em votos, um grande número de apoiantes de uma esquerda socialista democrática – não diria o mesmo de todos os militantes e activistas bloquistas, mas essa será outra questão –, deve reconhecer e aceitar publicamente a sua diferença. Não sendo prioritário fazê-lo a todo o momento, num debate com Jerónimo de Sousa este aspecto não deveria ter sido completamente esquecido (embora se entenda perfeitamente a opção deste em não ir por aí). Pois não o fazer corresponde, como defendi, a menorizar um pouco os muitos eleitores que votam BE pois não querem votar PCP, e também aqueles, sem partido, que ainda hesitam sobre em quem votar à esquerda. E nenhum de nós admite que eles o façam pelos lindos olhos de alguém, pela cor da gravata ou pela ausência dela, ou como se jogassem no Euromilhões.

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    O original e o genérico

    Bucha e Estica

    O tom cordato do qual se serviram Francisco Louçã e Jerónimo de Sousa no aborrecido pseudo-debate televisivo desta noite pode funcionar objectivamente como um embuste lançado sobre um sector do eleitorado, situado à esquerda e em clara ruptura com o PS, que de forma genuína hesita sobre em quem votar. Jerónimo surpreendeu um pouco mais, dadas as arremetidas anti-bloquistas antes adoptadas pelo PCP, uma vez que Louçã apenas manteve o habitual registo, sistematicamente assumido pelo Bloco, de contornar jovialmente este tipo de confronto. Ambos deram tacitamente a entender que as divergências serão pouco relevantes. Mas não são: os dois partidos têm agendas muito diferentes, uma cultura política hoje bem distinta, divergem bastante em áreas como as finanças ou as questões internacionais, e projectam expectativas separadas no que diz respeito a uma eventual participação em soluções de governo. Os cidadãos que desejarem conhecer quais as discordâncias têm por isso todo o direito a ser esclarecidos. Até para que Bloco e PCP não abonem as razões de quem anda por aí a sugerir que o medicamento é o mesmo e só as embalagens dão uma ideia do contrário.

    [Uma descrição mais detalhada da pacífica conversa é feita neste post de Pedro Correia.]

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      Delação e colaboracionismo

      Stasiland
      Estátua erguida junto dos antigos arquivos da STASI, em Berlim

      Há já umas algumas décadas que a revista L’Histoire vem dedicando artigos e números especiais à divulgação de estudos sobre o colaboracionismo, acabando de ser publicado um novo dossiê no número de Setembro. O interesse dos franceses pelo tema prende-se directamente com o rasto ainda razoavelmente fresco deixado pelas actividades de República de Vichy (1940-1944), pela capitulação de alguns sectores da sociedade francesa perante a ocupação nazi, e pela existência de um corpo notável de denunciantes e de colaboradores. O trabalho de pesquisa histórica projectado neste campo é particularmente difícil e delicado, uma vez que a afirmação da «verdade dos vencedores» transformou em perversas e criminosas as pessoas responsabilizadas por esse tipo de atitude, e tantos as sobreviventes quanto os seus familiares mostram natural relutância sempre que alguém pretende tocar no assunto. A denúncia como instrumento de política constitui uma prática antiga e universal que nem sequer é privilégio dos Estados totalitários. Na Atenas clássica, a delação era mesmo considerada um acto cívico, destinado a proteger a comunidade de determinados comportamentos desviantes, tendo provavelmente sido aí que se iniciou também a sua perversão em larga escala, uma vez que o denunciante tinha direito a parte dos bens confiscados ao denunciado.

      Foi todavia sob regimes fortemente autoritários que a atitude passou a ser sistematicamente enaltecida, sendo os traidores e os delatores promovidos frequentes vezes a heróis, destinatários de honras, medalhas e benefícios oferecidos por um poder que se pretendia incontestado. As benesses destinadas, no tempo da Inquisição portuguesa, aos «familiares do Santo Ofício», que funcionavam basicamente como testemunhantes e informadores, eram dessa natureza. A guilhotina revolucionária do período do Terror foi largamente provida por esta sorte de gente. E na União Soviética ficou sobejamente conhecido o caso do «glorioso mártir» Pavel «Pavlik» Morozov, o rapaz «pioneiro» que aos doze anos denunciou ao NKVD o pai por este vender alimentos sem autorização. O desfecho seria trágico: o pai de Morozov foi deportado para um campo de concentração e os avós, tios e primos, para evitarem a continuação da delação, acabaram por matar a criança, transformada por Estaline num «herói soviético» modelar. Na Polónia, durante a Segunda Guerra Mundial, ficou também amplamente registado o papel de muitos cidadãos polacos na identificação e denúncia dos judeus, responsabilizando-se esta atitude por ser aquele o único Estado europeu no qual o «problema judaico» terá sido efectivamente solucionado. A STASI leste-alemã tinha, por sua vez, um dos mais amplos e perfeitos corpos de denunciantes, tal como se encontra hoje bem documentado.

      Em Portugal – os vizinhos espanhóis, ao invés, já começaram há algum tempo este tipo de trabalho – não existe ainda um esforço sistemático e criterioso de reconhecimento das actividades de denúncia e de traição perpetradas por aqueles que, da aldeia do interior à grande cidade, em espaços públicos e privados, graciosamente ou a contar com benefícios, trataram de delatar os opositores que conheciam ou os meros gestos de desagrado ou de chacota em relação ao regime do Estado Novo aos quais assistiam. Não me refiro aos agentes da PIDE identificados, mas antes àquelas pessoas que ofereciam espontaneamente informações às autoridades, ou então que se transferiam de campo, colaborando formal ou informalmente com a repressão salazarista e actuando como traidores das causas e dos movimentos de oposição com os quais ocasionalmente se haviam cruzado. Um trabalho por fazer, à espera de quem por ele se possa interessar. Um trabalho difícil, sem dúvida, mas a História faz-se também revirando soalhos e revelando episódios infamantes. Para que possa servir de exemplo e de alimento da democracia.

        História, Opinião

        O erro

        O erro

        Existe um erro básico na apreciação que o PS e alguns dos seus apoiantes fazem do actual papel do Bloco de Esquerda. Consiste ele em meterem no mesmo saco o Bloco e o PCP, quando, de facto, apesar das franjas radicais e proto-marxistas que ainda resistem no BE, este tem vindo a afirmar-se cada vez mais como uma força-charneira. Enquanto partido política, cultural e sociologicamente localizado entre um «socialismo» de direita, assumidamente defensor de uma lógica gestionária, clientelar e desenvolvimentista de tipo neoliberal, e um «comunismo» de museu, activo mas sitiado, cada vez mais radicalizado e quase incapaz de dialogar com quem não siga a sua verdade histórica e fale a sua língua de madeira.

        Mais tarde ou mais cedo, PS e Bloco estarão condenados a entender-se como solução governativa de um tipo novo. Não quero com isto dizer que seja essa a solução na qual me revejo (aliás, aquela que Daniel Oliveira volta a defender na crónica publicada este sábado no Expresso). Continuo a pensar que é útil e até necessária a existência de uma força radical representativa, capaz de assumir com algum impacto uma presença de reivindicação e denúncia sem a qual a democracia pode derivar para uma lógica de gabinete ou para o autoritarismo. E que essa força já não pode ser o BE. Mas sei que a governação não se faz apenas da proclamação de princípios abstractos com os quais eu possa eventualmente simpatizar: faz-se de conciliações e de iniciativa. De algum realismo também. E será por aí que passará a aproximação da qual falo. Daí que os violentos ataques ao Bloco lançados pelos socialistas (e por alguns dos «independentes» que os apoiam) só possam voltar-se contra os próprios. Como? Simples (ou «simplex»): concorrendo para fornecer a muitos cidadãos a percepção de que tal solução de alternativa e diferença apenas poderá ser projectada se ocorrer uma votação bastante significativa no Bloco. Não sei se, para o poderem compreender, têm passado o suficiente pelo outro lado da realidade.

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          O caroço da JS

          O paradigma

          Um dos aspectos que mais impressiona na indicação da moça Carolina como «mandatária para a juventude» da campanha do PS é o sereno assentimento da Juventude Socialista perante escolha de tal densidade. Ou a invisibilidade pública de uma posição crítica que de algum responsável da JS tenha emanado. Esta organização, que em tempos terá funcionado, pelo menos formalmente, como «consciência crítica» do partido em relação aos seus adultos patronos, tal como acontecia com a JSD e até com a JC – mas não com a JCP, pois aí a juventude da idade foi e é temperada pela fidelidade aos «imutáveis» princípios –, parece ter perdido completamente a capacidade para definir uma voz própria e introduzir dinâmicas de reflexão. Justamente aquilo que a tornava razoavelmente respeitada fora do aparelho partidário. Hoje toda aquela precocemente responsável gente se concentra no seu papel de actores da propaganda e de rosto um pouco menos rugoso de um «modelo de modernidade» que a direcção do partido lhe destina. Afirmar por entre um chorrilho de tolices e de banalidades, como o fez a Carolina, que mais vale fazer batota do que perder, não lhes parece já constituir uma inqualificável ignomínia ética, uma distorção completa dos ideais socialistas mais elementares. Sobretudo porque, como calculam, o rosto público da jovem conquistará votos, votos significam poder, e o resto é conversa. Uma lógica muito natural, na qual só não alinham esses empedernidos radicais que dão demasiado valor aos princípios.

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            Conversa adiada

            Revolution

            Tão concentrada tem sida a atenção lançada neste período pré-eleitoral sobre as querelas mais ou menos individualizadas entre PS e PSD, e sobre a campanha dos socialistas pelo «voto útil» e contra essa «esquerda radical» que «serve a direita», que permanece por fazer um outro tipo de confronto, essencial para que a escolha de muitas pessoas faça sentido. Refiro-me à necessidade de se mostrar com toda a clareza que votar no Bloco de Esquerda ou no Partido Comunista Português não pode resultar de uma escolha fortuita ou sectária.

            O PCP percebeu-o mais cedo, radicalizando o discurso – consequente com as características da tendência obreirista que domina o partido – e atacando, em público ou no contacto directo, a actividade «pequeno-burguesa», para si falsamente «de esquerda», do Bloco. Já este continua a esquivar-se a este tipo de combate, confinando-se sempre a posições defensivas ou mesmo ao sepulcral silêncio de cada vez que o problema se põe. Existem, naturalmente, divergências profundas – de programa, de organização, de substância política, de atitude ética e mesmo de percursos pessoais – que tornam impossível, e até incompreensível para a generalidade das pessoas, qualquer aproximação formal entre uns e outros. Mas existe também uma real incompatibilidade de propostas que é preciso observar.

            Os comunistas têm mostrado qual a sua escolha, extremando as palavras de ordem (falam agora de «Ruptura e mudança», uma vez mais sem apresentarem alternativa de poder por falta de condições «objectivas e subjectivas»), enquanto o Bloco opta por se mostrar um pouco mais construtivo, com assomos apenas pontuais de radicalismo. A alternativa dos eleitores passa assim, na larga franja de cerca de 20% do eleitorado onde se trava esta luta, por uma escolha tão simples quanto esta: preferem uma força que se assuma como trincheira, juntado forças para «a luta» pelos seus improváveis «amanhãs que cantam», ou optam pela construção de uma base política capaz de obrigar a uma inflexão a cegueira do «socialismo gestionário» no poder? Por mim, a escolha está feita, mas acredito que ela seja ainda pouco clara para um grande número de pessoas. Por isso, e para que não se vote apenas no «contra», ou por uma questão de simpatia por Jerónimo ou por Louçã, este debate deveria também ter lugar. Embora eu desconfie que seja melhor esperarmos sentados por ele.

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              Bom princípio, péssimo sintoma

              Conversa

              O surgimento de blogues como o Simplex e o Jamais, reunindo pessoas dispostas a intervir no processo eleitoral apoiando o PS ou o PSD, foi de início uma boa notícia para a democracia. Anunciava o reconhecimento partidário, ainda que informal, da importância de um território de opinião e de informação cada vez mais frequentado, capaz de crescer na exacta medida em que os meios de propaganda tradicionais, como o comício, a arruada, ou mesmo o debate televisivo e radiofónico, se tornaram cada vez menos sedutores. O esforço dirigia-se então àquela parte do eleitorado, aparentemente em crescimento, que lê blogues de opinião (ou simplesmente «que lê»), não se limita a profissões-de-fé e detesta o ruído dos altifalantes e dos zé-pereiras. A quem não precisa ouvir aquilo que nada acrescenta ao que já conhece. Mas o tom e o conteúdo de quase todas as intervenções apresentadas nestes dois espaços parecem-me incongruentes na relação com esse objectivo. Com excepções, a maioria das participações sucede-se num registo de petit politique, do mero panegírico ou da cega depreciação, da trica, do «ele disse»/«ela não escreveu», próprio na aparência de «irmãos inimigos» separados questões de águas, que não me parece possa convencer quem não se encontre já convencido. Que nada acrescenta a quem, de facto, procura uma motivação racional, e a percepção de um rumo e de factores de esperança, para se decidir a desenhar uma cruz neste ou naquele quadrado do boletim de voto.

              O caso do Jamais diz-me pouco, pois este situa-se num campo que não é o meu, mas já não se passa o mesmo com o Simplex, uma vez que este pretende, pelo menos em parte, dirigir-se ao «eleitor de esquerda», e alguns dos seus colaboradores estiveram já, e por certo um dia voltarão a estar, do mesmo lado da barricada que eu (embora saiba que não apreciarão muito o próprio conceito de «barricada»). Aqui, admito que o tom geral me incomoda um tanto, uma vez que nada soma ao autocomplacente discurso partidário oficial e revela um lado, por vezes perigosamente agressivo ou próximo do primário, para mim até agora desconhecido, de pessoas que estimo e por cujo trabalho e inteligência tenho apreço. Em vez de agregarem capacidade crítica e de questionamento dos inegáveis bloqueios partidários, abrindo-se ao diálogo e alargando a capacidade de convencimento, a maioria dos participantes tem-se cingido a repetir ad nauseam séries de banalidades – em alguns casos, aconteceu já, chegou-se mesmo à enormidade – que não servem literalmente para nada. A não ser para uma afirmação pública, aos olhos do próprio grupo político e dos seus apoiantes, das certezas de quem escreve. Não me atrevo, como houve já quem o fizesse, a dizer que a motivação desta ou daquela pessoa seja a previsão de futuras prebendas governamentais. Não acredito que isso se passe com a maioria – embora obviamente não possa colocar as mãos no lume por todos –, pelo que a explicação do espectáculo diário ao qual tenho assistido se me torna difícil de entender. Só sei que aquilo que começou por ser a aplicação de um bom princípio se transformou num preocupante sintoma de dificuldade, ou de ausência de vontade, para repensar o repensável. Vindo de quem vem, não pressagia nada de bom para depois do 27 de Setembro.

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                Woodstock (ainda)

                Woodstock

                Gosto de ler o Novo Mundo (como já anteriormente seguia o Mundo Perfeito). O que não me compromete, claro, com as opiniões ou a sensibilidade da sua autora. Aliás, acho particularmente estúpido, e até um bocadinho doentio, ler apenas os blogues de quem pensa como nós e «desarriscá-los» à primeira discordância ou descuido verbal. Mas penso que a Isabela Figueiredo se deixou enredar, no post «Eu também não estive em Woodstock», pelas ciladas do anacronismo e da parcialidade.

                Eu explico-me, mas para o fazer preciso evocar um episódio. Há anos atrás, Bettina Roehl, filha desnaturada da radical Ulrike Meinhof, provavelmente abalada na personalidade pela infância complicada que teve, decidiu investir contra tudo aquilo que fossem ícones dos sixties e, claro, que lhe pudessem fazer recordar a mãe. Um deles foi Daniel Cohn-Bendit. Encontrou uma fotografia deste tirada em plena ressaca de 68, quando para ganhar a vida trabalhou num jardim-de-infância, e vendo-o nela a brincar com crianças, algumas sem roupa, serviu-se da imagem para o acusar de práticas pedófilas. Claro que existia um equívoco básico no qual a moça Bettina caíra: na época, os meados da década de 1970, vivia-se no ocidente uma fase de permissividade na exibição e na experiência do corpo, educando-se mesmo as crianças no sentido de o olhar e de o tocar com naturalidade, e era nessas condições, sem dúvida hoje pedagogicamente datadas, que o nosso «judeu alemão» surgia na imagem rodeado de nuas criancinhas.

                Voltando então ao post da Isabela, também aqui o anacronismo sugere uma leitura um pouco deslocada. O melhor mesmo é ler o post, pelo que adianto só o meu comentário. É evidente que o festival de Woodstock de 1969 não foi um megaconcerto à maneira daqueles que hoje conhecemos. Parece que se previam 200.000 pessoas e apareceram mais de 500 mil. As condições de comodidade eram praticamente nulas, evidentemente, e a higiene pior que péssima, o apoio médico inexistente (ainda assim apenas morreram dois participantes, um por overdose de heroína e outro atropelado por um tractor, mas para compensar nasceram dois bebés). E nem toda a música foi de qualidade igual. No entanto, o culto sixtie da natureza, associado à juventude dos participantes e ao ambiente da época, tornava a situação tolerável: os famosos «banhos de lama» foram mesmo improvisados, e não como aqueles que em 1999 foram ritualizados para as câmaras num patético remake do festival. Afinal, também ninguém se depilava ou usava desodorizante, perfume só se fosse indiano, e além disso choveu gloriosamente. Quanto ao ar de tédio, cansado, pedrado, notório nos participantes num festival que durou de 15 a 18 de um quente mês de Agosto, quem se mantém em tais condições fresco como uma alface?

                Claro que tudo isto teve um tempo, e a generalidade das pessoas que alinharam nos festivais da época não aguentaria agora tal ritmo: afinal, os cidadãos dessa geração que ainda vão a estas coisas dão só uma escapadela, apenas para ouvirem y ou z, dormem em hotéis com lençóis imaculados, cumprem a laboriosa higiene diária enchendo o corpo de cremes, comem refeições quentes em bons restaurantes, e regressam a casa a tempo de alimentarem o cachorro ou de verem o jogo. Mas, apesar da diferença, as pessoas das gerações mais novas que vão agora com toda a energia aos festivais de música, quase sempre em condições muito melhores do que aquelas existentes em Woodstock, sabem bem que «no meio da humidade, do fedor e do sobrepovoamento» existem momentos que recompensam tudo o resto.

                A Isabela Figueiredo não concordará com a minha leitura. E, mesmo que pertencesse à geração que foi a alguns desses primeiros festivais (quase pertence, eu sei), provavelmente continuaria a discordar de mim, que ainda fui a uns quantos. Gostos diversos, diferentes formas de estar, eram, como continuam a ser, coisa normalíssima. Já fazer juízos morais, e em tonalidades quase absolutas, sobre as sensibilidades e as práticas dos outros porque não são idênticas às nossas, é que me parece tão contestável agora quanto há quarenta anos. A estação tola, quase a terminar, também serve para estes pequenos desabafos, e no fundo do fundo all we need is love.

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                  Uma «guerra de necessidade»

                  Talibans

                  O problema é antigo e não persiste apenas, agrava-se. Por muito que possamos continuar suspeitar dos contornos e dos objectivos da mediação americana do mundo, e principalmente das suas iniciativas militares «preventivas» – embora só os estrábicos possam insistir, como num mantra, em que, sob esse ou outros aspectos, «Obama é pior que Bush» –, não é possível defender o abandono puro e simples do Afeganistão sem que a esse abandono deixe de corresponder um perigoso agravamento dos desequilíbrios regionais e o retorno em força do regime despótico e medieval dos talibãs. Diz o presidente dos EUA, a propósito da intervenção militar em terras afegãs, que «esta não é uma guerra de escolha, é uma guerra de necessidade». Seremos bastante tontos se, pelo menos, não aceitarmos discutir este argumento.

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                    Se nos calarmos por um momento

                    Espelho partido

                    Vivemos tempos difíceis para a rebeldia – sim, bem sei que a palavra vegeta démodée fora dos anúncios de marcas de refrigerantes –, sitiada por vozes insistindo em que «as coisas são como são». A audácia, lançada a contracorrente, que se desvia do imediato, é cada vez mais apontada como irrealista e suicidária. O impulso utópico é proscrito ou caricaturado. O rebelde – do latim rebellis, aquele «que começa a guerra», que recusa obedecer e se insurge – é depreciado, olhado como um vestígio do passado, herdeiro de uma subespécie hominídea que perfez o seu caminho mas se perdeu algures na cadeia da evolução. Bakunine e Nietzsche, Sade e Rimbaud, Camus e Beauvoir, mesmo Ghandi ou o Che, mortos, devem permanecer nas paredes, mas apenas como quadros de uma exposição. Os vivos, como Cohn-Bendit, Mandela ou o subcomandante Marcos, passam por troféus, quase inofensivos agora apesar da atitude desafiadora que um dia exibiram.

                    Aceita-se apenas – melhor, define-se como arquétipo de uma «rebeldia mansa», domada, sem perigo para a ordem imperante – o pequeno gesto que excede por instantes os limites do conformismo, simulando uma força inexistente. Como exemplo, uma revista de actualidades entrevistava há alguns dias uma jovem actriz e destacava o seu «passado rebelde», quando nos anos 80, para alvoroço da pequena cidade de província onde crescera, «andava pela rua de saia e sapatos de ténis». Políticos profissionais recorrem a idêntica estratégia, procurando legitimar uma imagem de «personalidade forte» quando destacam a irrequietude de banalíssimos episódios biográficos do seu passado mais remoto. Entretanto, alguma esquerda invoca ainda uma «rebeldia teórica», condicionada pelo apego à ideologia envelhecida que a moldou ou a um modelo falido de sociedade. De acordo com esta perspectiva disforme, rebelde não será então o homem ou a mulher que luta pela liberdade individual, pelo direito à diferença, por uma sociedade desbloqueada, mas sim o polícia que zela sem descanso pela suprema «ordem revolucionária».

                    Contrariamente, em A Política do Rebelde, Michel Onfray exalta a figura singular do rebelde, do verdadeiro rebelde, esse cujo génio sempre algo colérico o conduz, no encontro do seu percurso pessoal com a história humana, a um irreprimível desejo de confronto, a um impulso projectado para a superação dos limites. Com ele, sempre uma mesma recusa: a da ordem estabelecida, seja ela social ou cultural, percebida como uma ameaça e um obstáculo a ultrapassar. «Tudo aquilo que olhamos é falso», escrevia Tzara no Manifesto Dada de 1918. E em 1929, o brasileiro Oswald de Andrade constatava: «a falsa cultura, a falsa arte, a falsa moral, a falsa religião, tudo desaparecerá, mastigado por nós com a maior ferocidade». Sempre a recusa de uma gestão do presente «tal qual ele é» e a defesa da possibilidade do impossível.

                    Para além da negação cruel do cenário imposto pela ditadura do real, o rebelde observa o futuro com lentes de aumentar, por entre corredores espelhados que projectam um efeito caleidoscópico. Exagera e distorce a perspectiva, claro, mas nos assuntos que se relacionam com a administração do real vivido e do real possível não existem meias-tintas: ou se é avisado, atinado, «realista», ou se é excessivo, ao mesmo tempo apolíneo e donisíaco, uma vez que Apolo e Dioniso, os dois deuses superiores da mais importante epifania délfica, parecendo opor-se, afinal se completavam. Ou se gere o mundo apenas à vista, mergulhado na banalidade e, mais cedo ou mais tarde, no desespero, ou se projecta o salto em frente, superando, por vezes na dimensão de um pathos incidental, a enganadora sombra. As «pessoas extraordinárias» – de Thomas Paine a Billie Holiday – das quais falava Eric Hobsbawm na conhecida obra homónima, pertencem a este segundo tipo. São aquelas que convivem com o ar do tempo, com o fragor mediático, mas não se limitam a servi-lo, reconhecendo corajosamente a existência de um eco maior, receptivo à transformação e à busca da felicidade, que pode ouvir-se no horizonte. Se nos calarmos todos por um momento, e prestarmos atenção, conseguiremos ouvi-lo. É bom fazê-lo de vez em quando, sobretudo agora que nos oferecem programas sem alternativa, buscando governar à vista, confinar à maneira de Haussmann, as nossas vidas.

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                      Jogo de espelhos

                      Espelhos

                      Logo após ter escrito o post «In-dependências», recebi uns quantos mails perguntando explicitamente a quem me referia, e ainda um ou outro declarando taxativamente que eu visava o Senhor X ou Madame Y. Alguns desses ecos interpretavam o artigo como uma defesa empenhada da figura do independente, ao mesmo tempo que outros sugeriam que eu procurara justamente o contrário. Reli então o que escrevera e concluí que pouco mais havia a dizer.

                      Posso, no entanto, sublinhar o essencial: o texto não critica o princípio da intervenção política na condição de independente (*), e muito menos se refere objectivamente, e em termos pessoais, a A ou a B. Evoca apenas alguns dos fundamentos éticos da independência política, que me parece deverem ser transparentes e não falaciosos. Que acredito deverem somar diversidade, não repetir o repetido. E não reflectirem, por parte de quem os assume, por vezes em tom de comédia, um sentimento de superioridade moral estéril e até algo obsceno.

                      Se alguém não entendeu ou interpretou de outra forma aquilo que escrevi, tal só pode ter acontecido por duas razões: por falta de clareza da minha parte (melhor não sei fazer), ou por um desejo fortemente subjectivo de ler aquilo que lá não está (mas aqui o problema já me transcende). Salvo ocorra algum terramoto, ou Cristo desça de novo à Terra – na condição de independente, claro – não conto voltar ao assunto nos próximos tempos, pois não me parece que ele justifique o esforço nem quero entediar quem por aqui passa habitualmente. Por muito que exista quem possa considerar excitante observar o reflexo da própria imagem e efabular sobre a forma como os outros a observam.

                      (*) A partir da década de 1980, eu próprio participei em diversas campanhas, como candidato ou apoiante, na qualidade de independente. E foi nesta que dei agora o meu apoio público às listas do Bloco de Esquerda para o distrito e o concelho de Coimbra. Sem que me passe pela cabeça mimar um «bloquista» da linha dura (que los hay) ou repetir com enlevo frases dos dirigentes do BE. Sem sentir o dever de alienar a minha energia crítica.

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                        In-dependências

                        O independente

                        A pré-campanha eleitoral traz os independentes de regresso à boca de cena. Conhecedores da distância crescente que os tem vindo a separar do cidadão comum, os principais partidos procuraram resolver o problema tomando um caminho fácil e que não requer mudanças de rumo. Integraram então, nas listas de candidatos, elegíveis ou não, pessoas que não são militantes mas dispõem de prestígio político, profissional ou pessoal – para não falar de uma autoridade moral derivada justamente do seu descomprometimento em relação aos aparelhos partidários – capaz de gerar um «valor acrescentado» que pode tornar-se decisivo. A estratégia é democraticamente legítima, mas pode ser eticamente duvidosa, uma vez que muitas dessas «independências» correspondem ao rosto da cedência, ou mesmo do seguidismo, perante direcções políticas que assim maquilham a imagem pública sem cederem um milímetro na intimidade.

                        O historial desta «in-dependência» é longo e complexo. Os comunistas foram os primeiros a utilizá-la de forma sistemática, servindo-se frequentemente de compagnons de route, fellow-travellers, intelectuais «amigos» capazes de enunciarem uma política frentista que jamais questionou o seu papel de «vanguarda». Fazem-no ainda, como o pode comprovar, aqui no rectângulo, a intervenção dos «verdes» do PEV e de bem conhecidos militantes crónicos da «independência». Entretanto, todas as correntes passaram a recorrer ao subterfúgio, tendo dado particularmente nas vistas, nas semanas mais recentes, o Partido Socialista, assustado com os resultados das europeias e apostado em oferecer uma imagem pública de abertura – principalmente de abertura «à esquerda» – da qual sente absoluta necessidade. Estes «in-dependentes» surgem então, fundamentalmente, como nomes, rostos, corpos, carreiras, cuja presença visa um objectivo preciso, raramente enquanto factores de alargamento das propostas, das ideias, da capacidade reflexiva e até da representatividade. Por isso se mostram muitos deles mais papistas do que o papa, como é próprio de todos os que enxergam a luz da conversão ou tornam ao redil.

                        A independência, convém que se diga, pode no entanto conter muito de positivo. Ela não traduz, ou pelo menos não deve traduzir, apenas um regime de dispensa em relação à presença em maçadoras reuniões partidárias, ao pagamento sistemático das quotas, à sempre penosa distribuição de panfletos, à necessidade de beijar publicamente criancinhas incontinentes e matronas que exalam um certo odor a peixe, a ter de aguentar as tricas e as pancadinhas nas costas que ocorrem nos desvãos e antecâmaras das sedes partidárias. Muito ao contrário, ela pode ser algo de realmente difícil, que implica escolha, capacidade para remar a solo contra a corrente sempre que for preciso, não se envolver em cedências que podem trazer benesses mas implicam também a venda da consciência, saber requerer uma autonomia crítica que não significa desinteresse ou ausência de compromisso. Esta é a independência boa, verdadeiramente útil, com a qual os grandes partidos políticos só teriam a lucrar se com ela soubessem lidar.

                        No entanto, a independência da generalidade destes «in-dependentes» não tem essa cara. É certo que um independente companheiro de jornada não pode ser um cavalo de Tróia ou um franco-atirador: aproximando-se de um determinado partido, dando momentaneamente o rosto por ele, tem forçosamente de estabelecer pactos e, sobretudo em campanha eleitoral, acordos mínimos de lealdade e colaboração, não podendo desgastar as campanhas a partir de dentro. Se aceita colaborar «como independente», essa colaboração implica uma certa adesão programática, um mínimo de cumplicidade, empenho também, e bastante. Porém, deveria ainda, e obrigatoriamente, agregar diferença, questionando o questionável, apontando os erros que os militantes partidários se habituaram a desvalorizar ou não sabem ver, propondo caminhos possíveis, ainda que aparentemente «utópicos». Mostrando, afinal, sinais dessa diversidade, dessa abertura, que é suposto trazerem consigo. De outra forma, tornam-se cúmplices, involuntários ou não, de um logro. Mas é justamente este logro que me parece observar perante o espectáculo das razões que muitos «in-dependentes» têm invocado para justificarem a sua opção na batalha em curso. Desculpem que lhes diga.

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                          Vozes afinadas

                          Em tandem

                          Completamente de acordo com a leitura de João Tunes a propósito dos blogues em tandem criados para apoiarem, na pré-campanha eleitoral em curso, o PS ou o PSD. Muito de agitprop à volta da agenda das direcções partidárias, muito de panegírico e autojustificação, encómios e louvações, alguma traulitada personalizada também, aqui e acolá. Mas muito pouco, quase nada, de reflexão crítica substantiva, de esforço prospectivo, de polifonia, de debate, de sugestões no sentido de revisitar, para não repetir, os cenários do bloqueio político que temos vindo a percorrer. Sei que à esquerda e à direita desses espaços de opinião, o panorama não é mais animador, mas como falamos de alguma da «massa crítica» publicamente associada às únicas duas correntes susceptíveis de definirem os próximos quadros de governação, e de um esforço aplicado dentro de um território de comunicação onde é suposto aceitar-se maior ousadia, a situação afigura-se algo grave. E tremendamente enfadonha também, já agora.

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                            Cuidado com as causas fracturantes

                            Matraquilhos

                            Em solo nacional, três temas azedam facilmente qualquer debate, despertando impulsos primitivos que cegam cidadãos exemplares e assanham pessoas dadas à reflexão: comunismo, religião e futebol (já que o fado perdeu músculo). Os dois primeiros têm sido aqui recorrentemente invocados, mas de futebol não tenho falado. Chegou agora a vez de tocar no assunto, mesmo correndo o risco de despertar o hooligan escondido que habita dentro de um ou outro leitor.

                            A despesa com a compra de jogadores por parte das maiores equipas é, nas circunstâncias da vida do país e atendendo à dimensão financeira dos clubes, qualquer coisa de obsceno. Ainda assim, nos tempos mais recentes, Porto e Sporting têm mostrado um comportamento despesista aparentemente controlado: o primeiro, por causa dos sucessos desportivos e porque gasta menos com os jogadores que compra do que com aqueles que vende; o segundo, porque tem mantido uma política de aquisições relativamente moderada. Já o mesmo não se passa, todavia, com o Benfica, que todos os anos compra uma dúzia de futebolistas bastante caros, cedendo-os no ano seguinte por valores inferiores. Talvez seja preciso recordar aos mais distraídos que as receitas desportivas do «clube da águia», frequentemente fora da Liga dos Campeões, têm sido inferiores às dos outros dois, apesar de ter ainda o maior número de adeptos. Entretanto, só neste início de época já gastou mais de 23 milhões de Euros, prometendo outras compras para os próximos dias.

                            Nada disto incomodaria particularmente se não fossem duas situações objectivas. Desde logo o facto de o Benfica (como os outros, aliás) continuar a dever muito dinheiro ao fisco, e de a insolvência total ser algo de materialmente possível. Só que no dia em que isso estiver para acontecer, governo algum aceitará a falência técnica do clube, pois tal reduziria metade da população a um intolerável estado depressivo e fá-lo-ia perder as eleições seguintes. Serão então os cidadãos contribuintes, azuis, verdes, encarnados e de todas as cores, incluindo ainda todos aqueles que detestam futebol, a pagar facturas e hipotecas.

                            A segunda situação é, no fundo, uma constatação: governante algum se deu ao trabalho de, pelo menos, apelar publicamente ao comedimento dos gastos e à necessidade de se pagar o devido ao erário público. Não sei porquê, tenho a impressão de que o esquecimento tem alguma coisa a ver com a proximidade de uma ida a votos e de ser preciso, da parte de quem deseje ardentemente conquistar a maioria dos eleitores, um certo cuidado com as causas fracturantes.

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                              Agarra que é comuna!

                              Commie

                              Depois do disparate, mais valia ficar calado por umas horas. Mas o homem não consegue, está-lhe na massa do sangue falar pelos cotovelos. Alberto João Jardim veio agora esclarecer aquilo que pretendia com a tal proposta absurda de proibição do comunismo por decreto. Diz que realmente «o ideal seria a Constituição Portuguesa não proibir ideologias», tendo defendido aquilo que defendeu apenas para evitar situações de privilégio. Ora, se o exercício inicial, comparando as duas grandes experiências totalitárias do século passado, ainda se entendia, se bem que em termos menos grosseiros e ignaros do que os propostos, já o mesmo se não aplica ao fascismo e ao comunismo enquanto «ideologias». Se, no plano dos princípios, o primeiro é essencialmente elitista e agressivo, o segundo é – nos fundamentos, não na lógica grotesca dos regimes e dos partidos que perverteram a sua raiz utópica – estruturalmente igualitário e fraterno. Uma banalidade de base da qual alguns comentadores certificados se esquecem. Da qual o político ilhéu não se apercebe. Mas que faz toda a diferença.

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                                Seis teses e um oxalá

                                Speaker's Corner

                                Após as eleições europeias, começou a circular entre alguns comentadores um estranho sentimento de estupefacção e medo. Pelo facto, matematicamente comprovado, de 21% dos votantes ter decidido apoiar as candidaturas de partidos que eles associam – não sei se por convicção, se por mero expediente retórico – a uma «extrema-esquerda» fora do tempo. Mas nem a surpresa faz muito sentido, diante da amplitude das marcas de descontentamento que ampliaram o voto de protesto, nem o pânico se justifica, uma vez que o inimigo é menos perigoso do que parece. Afinal, a Revolução Bolchevique 2.0 não está aí, ao virar da próxima esquina.

                                1. Desde logo, apenas existe «extrema-esquerda» onde é possível dissentir de uma esquerda moderada mas efectiva. Ora, como a esquerda configurada no actual Partido Socialista, doutrinariamente confinada a vagas declarações de princípio para uso eleitoral, é essencialmente formal e apoiada num referencial histórico de dimensão sobretudo simbólica, julgo não ser possível extremar o inexistente.

                                2. Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português jamais caberão no mesmo saco. É verdade que o Bloco integra ainda pequenos vestígios de uma esquerda radical paralisada no tempo, mas o essencial da sua linha actual é até mais da natureza interpelante, como força de pressão destinada a criar condições para uma governação e uma mobilização social à esquerda.

                                3. Já o PCP continua a ser, e não se vislumbra que possa mudar nos tempos mais chegados, um partido de certa forma ambíguo: com uma prática pública protestativa e de contrapoder, mas ao mesmo tempo, e apesar de teoricamente concebido como vanguarda imaginária da luta pelo poder de Estado, sem propostas concretas sobre o que fazer com ele.

                                4. A esmagadora maioria dos votantes do BE jamais aceitará uma partilha de poder ou mesmo uma coligação eleitoral com os comunistas. A mesma coisa se passa, em sentido inverso, com uma grande parte dos eleitores do PCP e com a generalidade dos seus militantes. Para além de uma eventual confluência de princípios, existem experiências, culturas políticas e até marcas geracionais que os colocam em planetas diferentes.

                                5. Falar hoje de «extrema-esquerda» não é de falar de partidos como estes, com programas e estruturas dirigentes estáveis, com compromissos públicos, com ligações internacionais conhecidas, com uma integração mínima no sistema democrático parlamentar, com fundamentos ideológicos minimamente reconhecíveis. É antes falar das margens, algo anárquicas e bastante móveis, que agora se reconfiguram fora deles, ao sabor de causas e movimentos nos quais podem exprimir a sua radicalidade.

                                6. Se existem então razões para que o sistema e os seus defensores possam exprimir sentimentos de medo, elas não se encontram em partidos como os citados, que veiculam pontos de vista e interesses reconhecidos. Encontram-se antes na própria incapacidade dos grupos vocacionados para a gestão do sistema – a começar, no caso em apreço, pelo PS – que se deixam desvitalizar politicamente e se mostram incapazes de agregar os agentes mais dinâmicos e uma cidadania activa, trocados por exércitos de gestores mais ou menos competentes, mas conformistas e sem rasgo.

                                Dito isto, insisto em que a preocupação dos aparentemente apavorados comentadores visa objectivos errados. Seria mais interessante se ela pudesse voltar-se para a compreensão dos bloqueios do poder. Oxalá alguns deles o possam entender rapidamente.

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                                  Teerão também é aqui

                                  Teerão

                                  Nas eleições iranianas, juram os apoiantes de Moussavi e confirmam os observadores, ocorreu uma manipulação em larga escala dos votos e dos resultados destinada a assegurar a vitória de Ahmadinejad. A verdade é que, para além da luta eleitoral, se defrontam hoje no Irão dois modos incompatíveis de viver o Islão. Não dois ramos de uma mesma religião, mas duas formas de viver a vida da qual a religião é apenas uma parte. Uma que visa o unânime, a tirania do livro único, para a qual a modernidade, os direitos humanos ou a evidência social das mulheres constituem uma criação demoníaca que é preciso esmagar. A outra que é capaz de partilhar uma experiência humana contraditória e plural, mais próxima de uma ancestral cultura islâmica de liberdade que nos últimos tempos tem sido esquecida. Duas formas de estar no mundo que correspondem a dois modos de vida: o pulsar de um universo peculiar mas integrador de uma tradição partilhada, global, jovem, aberta à diferença, contra o ritmo cadenciado do ódio cego, da escalada da violência, do obscurantismo e da recusa da interacção com o diferente. Os que aceitam falar contra aqueles que escolhem obedecer. Não ter posição neste confronto, fazer de conta que não é connosco, ou, pior, tomar partido por Ahmadinejad só porque este se arvora em paladino do anti-americanismo, apenas revela cegueira e menosprezo pelos princípios básicos de uma ética democrática.

                                  Adenda: Ontem mesmo a nossa «televisão de serviço público» falou da situação no Irão durante 30 segundos no preciso momento em que a BBC News passava imagens em directo dos confrontos em Teerão. Após uma reportagem de cerca de 18 minutos sobre as andanças mundanas daquele rapaz madeirense que joga à bola.

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                                    Um filme que já vimos

                                    Sentido de voto

                                    As eleições europeias são, numa certa medida, as mais importantes de todas. Não decidem quem nos vai governar a casa ou quem guardará durante quatro anos a chave da junta, mas como nelas o «voto útil» tem reduzido peso, expressam de forma mais completa que as legislativas ou as autárquicas a vontade de muitas pessoas comuns. Além disso, uma grande parte dos sectores mais despolitizados, que decidem muitos dos resultados, nesta altura deixa-se ficar em casa a ver a TVI, ou vai dar milho aos pombos e fazer o circuito dos centros comerciais. Sobressai então, um pouco mais, a opinião daqueles que a têm. Mesmo quando ela se traduz em votos dispersos, deixados em branco ou anulados com um risco de alto a baixo.

                                    Isto confirma o absurdo das interpretações de sectores próximos da direcção actual do PS, que, em estado pós-traumático, se centram agora na vertigem da bipolarização e insistem na ideia peregrina segundo a qual escolher opções «menores», ou que jamais serão governo, é «fazer o jogo da direita». Essas pessoas sabem muito bem que, se não ocorrer um cataclismo social neste momento imprevisível, tanto o Bloco de Esquerda como o Partido Comunista atingiram o maior score possível, e, em conjunto, jamais superarão os 25 ou 26 por cento dos votos, servindo-se desta previsão para minimizarem a escolha do grande número de pessoas que votou nesses partidos sem necessariamente se reverem neles e reconhecendo aquilo que os separa. Mas isso significa reduzir a democracia a uma espécie de teste americano com duas opções, sendo a «esquerda» da qual falam aquela que sabemos: uma área de gestão realista, desvitalizada e soporífera, filha unigénita da decrépita «terceira via», que reduz a política ao circo mediático, à genica pré-formatada das jotas e à capacidade de desempenho dos comissários políticos. De «esquerda», de «esquerda», sobra então um passado legitimador, a cor da bandeira, o «punhinho fechado», e umas quantas frases ocasionais usadas em campanha.

                                    Muito pelo contrário, se o alargamento do espectro político pode implicar dificuldades futuras – leia-se, dificuldades em produzir e manter maiorias absolutas – enriquece também a diversidade democrática e contribui para o empenho na coisa pública de um maior número de pessoas. As dificuldades resolvem-se com aproximações, com acordos, com verdadeiro debate, com algumas cedências de todos, e não com a constante submissão a uma força hegemónica mais bem colocada para ser poder ad infinitum e impor, sem dar ouvidos aos outros, as leis que bem lhe apetecer rabiscar. Afinal, um filme que já vimos. Um filme mau, por sinal.

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