Quando será que um certo feminismo, como uma determinada esquerda, aceitarão que a luta social não tem necessariamente de ser sempre sisuda, monástica, zangada e maniqueísta? E que vivemos num mundo muito mais desordenado – e polissémico, se quiserem utilizar o chavão – do que o era o mundo de há trinta ou quarenta anos atrás? E que sátira e ironia nem são a mesma coisa nem cumprem idêntica função? A consideração devida a pessoas com o passado de Maria Teresa Horta não pode ser desculpa para aceitarmos posições como aquela que aqui se refere (link recolhido deste post da Maria João), e que se voltam até contra a causa que pretendem defender. Além de que aceitar que algo possa ser imune ao riso é pactuar com a limitação das liberdades. E é dar um pouquito de razão aqueles que têm uma grande vontade de enviar rapidamente para o mais fundo dos infernos o caricaturista holandês que brincou com o turbante do Profeta. Lembram-se das últimas cenas de La Vita è Bella, de Begnini?
P.S. em 24/11/2008: Teresa Horta repete hoje, em carta do leitor no Público, o mesmo tipo de argumento. Está no seu direito de o fazer, evidentemente, mas é pena não ter percebido. Lembrar-se-á ainda da Mosca do Diário de Lisboa, nos inícios da década de 1970? Ou será que já na época lhe não achava graça?
A gaffe cometida por Cavaco ao referir-se ao 10 de Junho como «dia da Raça» não é mais do que isso: uma gaffe. Podemos entender, e provavelmente bem, que ela provém do lado mais obscuro da consciência atavicamente conformista desse português-padrão – capaz de conviver em paz com os valores e as palavras de ordem do antigo regime – que Cavaco foi na sua juventude. Podemos considerá-la, talvez igualmente bem, o resultado de um momento de descontracção, ou de irritação, no qual o PR baixou um pouco as guardas do cuidado político. Tratou-se de uma gaffe, de facto, caricata com todas as gaffes e que pode servir de motivo para alguma chacota. Agora falar gravemente do assunto e «pedir esclarecimentos» sobre o fundamento político de uma gaffe, como o fizeram o PCP e o Bloco de Esquerda, é algo da ordem do ridículo. Pior só mesmo o júbilo de alguma direita, que levou igualmente a sério as palavras disparatadas do presidente.
Seria um trabalho demorado, fastidioso e provavelmente inglório tentar decifrar junto de muitos militantes do PCP as razões pelas quais a restante esquerda rejeita colaborar com eles ou então o faz com as maiores cautelas. São anos e anos, muitas décadas, quase um século, de afastamentos, de incompreensões e de combates pela hegemonia. E repare-se que não me estou a referir à rejeição de uma esquerda mais um menos radical por parte do partido, mas sim ao seu contrário: a recusa por parte da autoproclamada «esquerda da esquerda» ou da «esquerda democrática» em chamar a si pessoas, comunistas, que, tanto pelo seu passado quanto por algumas das causas que incorporam, até seria natural que aproximassem de alguns dos seus objectivos. As dificuldades aumentam, aliás, quando começamos a descer o nível geracional das partes envolvidas: salvo raras e caquécticas excepções, os comunistas mais velhos são pessoas a quem a vida foi ensinando a combinar as convicções mais ou menos inflexíveis que detêm com algum sentido prático no relacionamento com os seus hipotéticos compagnons de route. Mas quando descemos um pouco no tal declive geracional, a prática resvala quase sempre para a impossibilidade total do diálogo político e de uma aproximação no terreno. Basta seguir-se, no limite, o discurso de alguns blogues da autoria de jovens comunistas onde se sucedem textos povoados de chavões longevos e de inamovíveis declarações de princípios, de proclamações de ódio a quem possa contestar as suas convicções, explicadas muitas das vezes com base num indigente arsenal dogmático confinado a citações de Lenine.
Um bom exemplo desta incapacidade de adequação e de diálogo pode, porém, ser encontrado em pessoas cuja experiência poderia significar outra ponderação da realidade. Num texto completamente rancoroso ao qual cheguei através de um post publicado por João Tunes, uma jornalista responsável pelo Avante online aplica-se a abordar o comício «unitário» do Teatro da Trindade – abaixo mencionado, como se terá percebido, sem qualquer entusiasmo da minha parte – referindo-se a uma «esquerda alegre», ou a uma «esquerda em festa», como qualificativos destinados a menorizar sectores com os quais os comunistas deveriam procurar conviver, e que, no seu todo, até representam hoje um universo eleitoral provavelmente mais alargado que o do próprio PCP. Eles recordam-me epítetos rigorosamente iguais, velhos de quarenta anos, utilizados no passado para designar os esquerdistas, ou os «esquerdalhos», que ensaiavam vias próprias de combate à ordem estabelecida. Na austeridade do espírito de seita que os seus cultores mantêm, na sisudez da uma atitude rigorista perante a política e perante a vida que procuram afirmar, na fé simplista e sofredora do seu credo escatológico, são incapazes de perceber uma coisa tão simples como o lugar central da dimensão festiva (e não apenas o «da Festa do Avante!») na mobilização para a vida colectiva e para a política das novas gerações e dos agora decisivos sectores intermédios da sociedade. E continuam a considerá-lo um atestado de menoridade política ou de degradação ideológica. Não querem saber de uma das principais (ou das poucas, consoante a perspectiva) lições do Maio de 68, que continua a entrar-lhes por um ouvido e a sair-lhes pelo outro, deixando de permeio apenas a incompreensão e a animosidade. Não é coisa da qual devamos rir-nos, aqui deste lado um pouco menos sectário e um pouco mais «festivo» da vida.
Pelos ecos que vão chegando, o comício-festa com bilhete de entrada que reuniu no pequeno Teatro da Trindade bloquistas, ex-pintasilguistas (que las hay, las hay), renovadores comunistas, Helena Roseta e Manuel Alegre, supostamente para «comemorar Abril e Maio» numa noite de Junho, não excedeu as expectativas: uma invocação do futuro na evocação do passado. A paisagem fotográfica que nos é revelada pelos jornais em papel e em linha acompanha-a: é incontornavelmente triste e soturna. Assim não vamos lá.
Tal como quase toda a gente, tenho poucas dúvidas sobre qual vai ser a prestação de Manuela Ferreira Leite como líder da oposição. O perfil com o qual chegou à direcção do seu partido não é o de alguém com um real poder de sedução, capaz de tiradas empolgantes, com quem seja possível estabelecer grandes empatias ou a quem se possa colar um sentimento de esperança. É antes o de «pessoa séria», com uma argumentação ponderada, que vive da reputação adquirida no tempo em que foi ministra e do cansaço da maioria dos cidadãos – incluindo-se nestes uma parte significativa dos militantes social-democratas – diante das figuras circenses que têm dirigido o partido. É também o de uma mulher que não vale perante a opinião pública pelo facto de o ser. Apesar das flores e dos beijinhos, não ganhou o PSD por usar saltos altos, mas sim pelo contrário: por dar a ideia de ser «o homem certo» em condições de arrumar os negócios de família. O que não deixa de ser uma desvantagem em termos de novidade e de capacidade de mobilização. E uma segurança adicional para Sócrates. Tudo muito previsível e très ennuyant, aqui por estes lados.
A atitude diante do que se passa actualmente na Birmânia funciona como um bom exemplo do estado de objectiva crueldade a que podem chegar os sectores que em questões de política internacional colocam como prioritário, acima de quaisquer outras considerações, o combate sem cedências ao «inimigo principal». Receando fornecerem argumentos que possam servir a defesa de medidas castigadoras da atitude sanguinária dos pulhas da junta militar – como a instauração imediata de um severo bloqueio às actividades da junta no poder, ou a rápida imposição de uma intervenção humanitária –, e de com essa posição poderem aproximar-se das posições intervencionistas dos governos ocidentais, preferem calar-se, sem aparente incómodo, diante da bestialidade e do comportamento genocida. Preferem considerar o respeito elementar pela vida humana como algo que deve ser ponderado caso a caso, de acordo com determinados objectivos estratégicos. Não o fazem por cobardia: apenas faz parte da sua carga genética ideológica.
Enquanto termino este post, chega nova informação: os governantes birmaneses recusaram a entrada no país dos elementos da AMI que pretendiam auxiliar as vítimas do ciclone. Não, não se passa «numa galáxia muito, muito distante…».
Parece-me um tanto estúpido, para não dizer completamente idiota, procurar dividir o mundo entre aqueles que andam por aí a falar do Maio de 68 como instante fundador de uma nova era e aqueles que não querem saber dele para nada porque ele para nada lhes serviu. Entre os fatigados e repetitivos soixante-huitiards e as suas enérgicas e desmemoriadas crias. Entre os que se esgotam na prostração nostálgica e aqueles que apenas acreditam no poder de um novo que precisa assassinar para ser novo. Pelo meio, os outros: os que fazem de conta que foi tudo um mal-entendido, os que pensam que não passou de uma monumental bebedeira seguida de ressaca, os que só vêem a coisa pelo lado arenoso da arqueologia. Creio que, à excepção dos indiferentes, todos têm razão. Acontece que uma pequena frase fundadora e quarentona, escrita a negro numa parede de Nanterre, falava já disto: «Tout ce qui est discutable est a discuter».
Sir Bob Geldof é um tipo bastante irritante e que vale menos do que julga. Não fora a participação num programa sobre a fome na Etiópia que a BBC passou em 1984, e o seu pequeno sucesso como músico e actor tê-lo-ia confinado a actuar o resto da vida em bares esconsos das imediações de Quarteira ou de Shepard’s Bush. A partir da canção de caridade «Do They Know It’s Christmas?», para a qual conseguiu na altura o apoio de pessoas como Bono, The Edge, Boy George e Paul McCartney, e do mega-concerto Live Aid, de 1985, Geldof transformou-se numa figura reconhecida em toda a parte, perambulando como porta-voz de um certo remorso da pop-star, tão preocupada com os males do mundo, os famintos e os pobrezinhos quanto por levar uma vida protegida e sumptuária. Pelo meio, Bob lá foi conseguindo dinheiro, alguma influência, eventualmente um certo êxito numa tarefa que não terá deixado de ser importante para as pessoas carenciadas que dela podem ter beneficiado. Desculpando, de certa forma, o facto de ser um tipo arrogante e assumidamente conservador, de usar fatos às riscas, de dar-se a conhecer por dizer a primeira coisa que lhe vem à cabeça, e de ser apaparicado por quem ainda se deixa deslumbrar por qualquer rosto de projecção planetária.
Dito isto, convém reconhecer que está por provar que, tal como Geldof disse agora em Lisboa num jantar para banqueiros, diplomatas, políticos, académicos e jornalistas, Angola seja essencialmente «um país gerido por criminosos». Aceitemos que possa andar lá por perto. Ou que não, que não ande. Que possa até ser natural que os responsáveis angolanos se indignem, considerando as palavras do irlandês «um exercício puramente gratuito». Mas o que já não se pode aceitar é que o oficioso Jornal de Angola critique agora o Banco Espírito Santo pelo simples facto de ter convidado o músico, e trate este último como um criminoso e um vulgar beberrão, invocando a possibilidade de se tomarem «medidas legais apropriadas» contra ele. Deveriam saber que em democracia toda a gente tem o direito de dizer disparates. Ainda que estes possam conter algum fundo de verdade. Angola tem pela frente um longo caminho a percorrer, até remeter à irrelevância atitudes persecutórias como esta.
A SIC-Notícias acaba de passar uma reportagem sobre uma iniciativa da Liga dos Combatentes e da União Portuguesa de Paraquedistas no sentido de localizar e de levantar os restos mortais dos 11 militares que há 35 anos foram enterrados em Guidage, na Guiné-Bissau, após terem sido abatidos numa batalha muito dura para as tropas portuguesas. Intitulado «Ninguém fica para trás!», o programa expôs aos olhos do espectador-voyeur todo o detalhado trabalho de pesquisa e identificação dos mortos, cujos despojos foram tratados como meros objectos à disposição de uma observação científica voraz, mas também o confronto da sua descoberta com a memória dos familiares a quem a dor foi agora reacendida.
No debate que se seguiu, percebeu-se que a Liga pretende que esta iniciativa seja apenas um começo: propõe-se organizar equipas e partir para os territórios dos três antigos teatros da Guerra Colonial, com o substancial apoio financeiro do Estado e de pá e picareta em punho, à procura dos restos mortais dos milhares de militares portugueses que ali ficaram enterrados. Em grande número de casos com um convencimento, por parte das famílias, de que os seus mortos haviam regressado à «Metrópole» para se lhes fazerem os funerais. Numa campanha mórbida que visa, como ficou claro do inenarrável discurso de um dos responsáveis pela iniciativa – que se apresentou como «ex-combatente do ultramar» e «doutorado em neuropsiquiatria» -, um claro revanchismo militarista pós-conflito. Mais preocupado com «a honra» (daqueles que jazem, afinal, em território «inimigo» das «ex-províncias ultramarinas») que com o luto das famílias (um luto que não se importam de reanimar em nome dessa «honra» que inventaram).
Lúcida apenas a voz do Coronel Carlos Matos Gomes – um dos antigos combatentes que esteve nas três frentes de guerra e que presenciou inúmeras mortes em combate -, sublinhando com veemência o carácter doentio e chocante de uma reportagem que apenas explorou a curiosidade pelos dados científicos e pela emoção sentida das famílias envolvidas, desrespeitando a paz dos que caíram. E de uma iniciativa que pode dar início a um festim negro de busca e confirmação dos cadáveres dos mortos da Guerra Colonial. Reacendendo feridas, traumas e conflitos que julgávamos a caminho de serem resolvidos. Como se sabe, é perigoso brincar com fósforos.
Durante algumas semanas, Dany «Le Rouge», o libertário, foi para o Ministério do Interior «judeu alemão» e para o PCF «anarquista alemão». Hoje permanece inclassificável, com atitudes que desagradam à esquerda e à direita. Em 2001, a defesa pública da intervenção armada anti-taliban retirar-lhe-ia a simpatia política de muitos dos antigos correligionários e desacreditá-lo-ia junto daqueles que jamais aceitarão o mais pequeno pacto com o arquivilão americano. A leitura que Daniel Cohn-Bendit (DC-B) tem vindo a fazer do Maio de 68 e do seu rastro tem alargado ainda mais o círculo da rejeição.
Em Forget 68, um pequeno livro das Éditions de l’Aube que transcreve uma conversa mantida com o jornalista Stéphane Paoli e o sociólogo Jean Viard, DC-B indica aquelas que considera serem as duas grandes incompreensões mantidas a propósito do significado do movimento. A primeira, afirma, «é a de Sarkozy e da direita, para quem todos os males da França de hoje derivam de 68», a segunda residirá «nessa fábula da extrema-esquerda para quem concluir 68 se mantém na ordem do dia» (p. 123-4). Contra a depreciação ou o maravilhamento, admite a derrota política do Maio, mas destaca a sua vitória a longo prazo, determinada principalmente pelo impacto das ideias e das vivências que o acompanharam.
Deve dizer-se que DC-B não partilha com muitos dos seus contemporâneos de uma visão nostálgica do movimento do qual continua a ser o rosto mais visível. E faz questão de afirmá-lo. Sublinha sempre o seu carácter episódico, datado, e a sua manifesta incapacidade para produzir na sociedade francesa uma qualquer ruptura de carácter revolucionário. Destaca também a sua inclusão na vaga de revolta que cruzou uma grande parte do planeta nos anos 60, representando um dos seus mais importantes momentos. Mas sublinha principalmente a sua dimensão simbólica como instante no decorrer do qual passaram para primeiro plano práticas e propostas que questionaram a ordem política e moral da burguesia, ao mesmo tempo que revelavam a inadequação das ortodoxias da esquerda a um universo social emergente.
Nesta direcção, pode aproximar-se parcialmente a posição de DC-B da expressa logo em 1970 por António José Saraiva, para quem, em Maio e a Crise da Civilização Burguesa, os acontecimentos de 68 teriam sido «obra de uma mudança espiritual». Mas, tal como o fez recentemente a americana Kristin Ross em May’68 And Its Afterlives, recusa também a leitura inócua de um Maio puramente festivo, reconhecendo-o sem equívocos como momento de aproximação das esperanças e da contestação dos intelectuais à luta dos trabalhadores e dos sectores anticolonialistas e anti-imperialistas que se incorporaram no movimento. Diversamente de Ross, porém, DC-B considera-o também como momento dotado de um significado simbólico que o tempo ampliou, acabando por ganhar vida própria ao materializar uma espécie de vitória a longo prazo, e de desforra, da geração derrotada pela polícia e pelos gaullistas nas ruas de Paris.
Propõe esquecer 68, mas apenas na medida em que a excessiva e recorrente lembrança tem servido para que os seus inimigos «em diferido» lhe atribuam um sentido perverso. E para que os seus partidários passadistas se não continuem a servir da sua memória oficial como obstáculo ao lançamento desse esforço de «recomposição do pensamento», associado «a uma exigência de liberdade e de autonomia tanto colectivas quanto individuais» (p.85), que se revela hoje indispensável, como um desafio, na procura de soluções para os ventos de mudança que varrem um mundo radicalmente outro.
Não se encontrará nada de substancialmente novo nem de particularmente original neste pequeno livro. Mas o discurso enérgico que percorre Forget 68 ajudará a pensar o Maio francês, o seu tempo e a sua posteridade sob perspectivas que não sejam a da rejeição liminar sugerida pelas palavras de Sarkozy, ou a da nostalgia de um mundo carregado como um fardo por todos esses soixante-huitiards que num dado momento das suas vidas deixaram de dar corda aos relógios. Esquecer para, talvez, melhor lembrar.
De vez em quando tento compreender a tendência, cada vez mais acentuada no Bloco de Esquerda, para desvirtuar as suas origens, a identidade sociológica da sua matriz, a dose de esperança que devolveu nos finais da década passada a muitas pessoas que a haviam perdido algures nos baços anos 80 ou que estavam a despertar para a prática política. Lembro-me então das razões que inventariei para depois me afastar: a redução do essencial da iniciativa à actividade eleitoral ou parlamentar, a passagem para segundo plano de causas e áreas de intervenção que não estimulam consensos, a absurda auto-imagem de «partido de confiança» (e a consequente moderação da «rua» como território de combate), a reduzida carga política de um discurso que se pretende mostrar «aceitável» (por quem, jamais percebi), a intolerância latente de um proto-marxismo de museu que mantém a sua força, o estrabismo de certas posições no domínio da política internacional. Lembro-me também das razões que em 1999 me levaram a aderir ao projecto. E releio um texto que escrevi em Janeiro de 2000, ao qual chamei «Todas as cores de uma esperança». Está ali tudo o que na altura me empolgava, como empolgava muitas outras pessoas, e que hoje se esvaeceu quase por completo.
Foi nessa esperança extraviada, e nesse imaginado partido de convicções, de denúncia, de pressão, de resistência e de justiça, no qual uma vez acreditei, que voltei a pensar quando li a afirmação, produzida por Rui Tavares (que retomou, faça-se a justiça a Daniel Oliveira, a posição por este defendida há já largos meses), de que «um partido da resistência não chega», e que «para o BE ter mais votos, tem de começar por querer ser mais». O que deixa no ar duas evidências. A primeira, se tal for assumido como orientação estratégica do Bloco, é que ocorrerá uma ruptura definitiva com as causas que não somem votos, implicando uma autêntica refundação do partido. A segunda é que está algures a ser construída a fantasia impossível de um «Bloco de poder». Como presumo que uma estratégia bolchevique de assalto ao Palácio de S. Bento esteja fora de questão, e tal «ser mais» só pode significar o negociar de um ou dois artigos neste ou naquele diploma ou o suplicar de duas subsecretarias de Estado num eventual governo de coligação, ocorre-me perguntar: com quem e em que bases programáticas será possível, neste momento, desenhar tal coligação? Ou será que…
Cheguei ao caso através de um post de Francisco José Viegas. Nele se chama a atenção para uma opinião de José Eduardo Agualusa, expressa durante uma entrevista concedida ao jornal Angolense, segundo a qual Agostinho Neto, António Cardoso ou António Jacinto poderiam ser «eventualmente muito boas pessoas,(…) mas eram fracos poetas». Claro que, sobretudo por causa do primeiro, caíram o Carmo e a Trindade para os lados de Luanda, ao ponto de começarem de imediato a correr declarações tendentes, uma vez mais, a desqualificar Agualusa no plano intelectual, político e até pessoal, acusando-o, por exemplo, de ter ido «longe demais ao atacar grandes figuras emblemáticas da literatura nacional».
Sem ser crítico literário, conheço o suficiente da obra dos três autores angolanos para, neste caso, concordar genericamente e em consciência com Agualusa. O que não invalida que admita que, para muitas pessoas para as quais a grande poesia deva «conter mensagem», ou então «exprimir sentimentos» sob «belas palavras», eles mereçam todos os epítetos que lhes possam conferir a aura dos «grandes poetas». Posso dizer a mesma coisa da poesia de Miguel Torga, Eugénio de Andrade ou Manuel Alegre, que não considero grandes poetas embora deva respeitar quem ache que o são ou quem tenha gosto em lê-los. Como reconheço a honestidade e o esforço que todos eles foram, eventualmente, depositando no seu próprio labor poético. Aquilo que não é tolerável é que a obra de alguém – poeta, crítico, amola-tesouras ou qualquer outra coisa – esteja isenta de exame e origine formas de coacção sobre a opinião ou a iniciativa de quem a possa contestar. Pelo que se pode ver, na ainda débil democracia angolana, onde se mantém um regime «firme e determinado, mas não totalitário» (palavras de um editorial do sempre oficioso e oficiante Jornal de Angola), permanece com voz activa quem pense que deva estar. Concordo com FJV quando este lembra que «convém estar atento, para que não pensem que ninguém ouve».
Que fique claro que considero detestável – e particularmente perigoso – Fitna, o filme anti-islâmico de Geert Wilders, aquele deputado da extrema-direita holandesa que saiu agora da semi-obscuridade para os títulos dos media. Detestável pelo seu conteúdo racista e intolerante, que não se contradiz quando estigmatiza o racismo e a intolerância dos outros, uma vez que toma partido por um dos lados do conflito de culturas e de explicações do mundo para o qual existem apenas os inequivocamente bons (nós, sem dúvida) e os inexoravelmente maus (os outros, pois quem mais haveria de ser?). Mas o filme é perigoso também, pois serve essencialmente para excitar os ânimos dos extremistas – situados de um lado e do outro do combate sem tréguas que eles desejam – podendo servir de rastilho para uma vaga de violência e xenofobia difícil de conter e capaz de trazer ainda mais ódio, sofrimento e desejo de vingança.
Todavia, algumas das reacções de repúdio que tenho lido por aí parecem-me algo filisteias e inapropriadas, pois tendem, uma vez mais, a desvalorizar objectivamente um elemento presente no documentário – e nele alarvemente generalizado – que é o poder crescente dos grupos islamitas sobre sectores cada vez mais amplos do mundo islâmico. Mergulhados há séculos na insciência, na miséria e na submissão – que Enzensberger considera ter sido agravada quando da recusa da revolução cultural determinada, na Europa, pela invenção da tipografia -, afastados de um debate aberto sobre o mundo contemporâneo, a sua diversidade e as suas oportunidades, dependentes de tecnologias que são forçados a comprar ao ocidente, eles têm sido presa fácil dos tiranos e dos exaltados, para os quais a missão apenas estará concluída quando a sua concepção paranóica e medieval do mundo vingar sobre o planeta.
É certo que o radicalismo islâmico não pode ser identificado com o Islão no seu todo, e que é dirigido por minorias que apenas se representam a si mesmas. Mas é já um fenómeno de massas, e em crescimento – basta olhar para a dimensão das manifestações de rua que assumem as suas palavras de ordem – em relação ao qual é preciso definir uma intervenção que não deve apoiar-se na errada noção de que os seus responsáveis são uma ínfima minoria e que existe uma opinião moderada que acabará por isolá-los. Uma intervenção que passa pela defesa intransigente dos valores de tolerância, liberdade e laicidade que o mundo de matriz iluminista – hoje crescentemente miscigenada com diferentes influências, é certo e é bom – deve preservar e partilhar, no diálogo com o outro, enquanto conquistas que lhe permitiram um dia começar a superar o estado de barbárie. E que as populações brutalizadas pelos regimes tirânicos que vigoram na generalidade dos países islâmicos têm o direito de reconhecer como opção. Diminuir a importância desta tarefa por causa duma guerra estúpida como aquela que Bush levou ao Iraque, devido a algumas iniciativas criminosas dos falcões israelitas, ou em função de acções deploráveis e arriscadas como esta do deputado holandês, é que pode tornar-se perigoso. Ao contrário do que parece pensar gente como Wilders ou os desculpabilizadores passivos do Outro, o mundo não é, nem pode ser, a preto e branco. E menos ainda com o preto de um lado e o branco do outro.
Todo o país viu as imagens e fala no caso da agressão da aluna da Carolina Michaëlis à sua professora de Francês. A atitude é de unânime condenação, embora eu desconfie que alguns estudantes da faixa etária da agressora possam considerá-la uma heroína e, em certos casos, tenha já «molhado o pão» no apetitoso lombo de outro infeliz docente (ou, pelo menos, tenha sentido uma quase-irreprimível vontade de o fazer). Têm sido distribuídas as culpas por toda a gente, colocando-se por vezes a agressora – que não deixa de o ser pelo facto de não ter batido na cara da professora – numa posição protegida de «vítima do sistema» que lamentavelmente perdeu a compostura. Sem querer insistir no que tem sido dito (um largo leque de posições pode ser encontrado na caixa de comentários de um post de Daniel Oliveira), chamo a atenção para algumas coisas que me perturbaram particularmente e que estão para além da agressão em si. São elas a cumplicidade ou a inacção do conjunto da turma, a falta de uma reacção decidida da professora, a não-apresentação imediata de queixa, a incapacidade da direcção da Escola para tomar medidas claras e prontas (e depois para esclarecer devidamente a opinião pública), a revelação de uma sucessão de casos análogos ou piores entretanto silenciados, o facto da esmagadora maioria das vítimas destes casos serem mulheres, o silêncio conivente dos pais dos jovens agressores (que terão a dizer disto as sempre tão buliçosas «comissões de pais»?). E ainda a real responsabilidade dos governos que têm vindo a retirar prestígio e autoridade aos professores.
O caso leva-me a reflectir sobre a minha própria experiência, e a falar aqui de um assunto que permanece tabu, ainda que falado entre dentes, com sinais de vergonha, por professores, agora do ensino superior, que não sabem o que fazer e começam também a temer o pior. Dou aulas numa universidade desde 1981, e, naturalmente, ao longo de todos estes anos tenho-me confrontado, na relação mantida com dezenas de milhar de alunos, com comportamentos muito diferenciados no espaço das aulas. Apesar dessa diversidade, e tendo conservado sempre uma relação nada autoritária com a generalidade deles, jamais tive o menor problema disciplinar. Tanto quanto sei, a mesma coisa se passava com quase todos os meus colegas (as raríssimas excepções ficaram quase sempre a dever-se a atitudes de incompetência ou de arbitrariedade). Quando começaram a suceder-se os problemas disciplinares nas escolas secundárias, estes não se reflectiram logo nas universidades, presumindo-se sempre que os estudantes entretanto «cresceriam» e manteriam já comportamentos responsáveis quando chegassem aos nossos anfiteatros.
Mas tudo mudou há cerca de dois ou três anos atrás. A verdade é que, após as sucessivas vagas de alunos com deficiente formação científica imposta por programas e métodos no mínimo discutíveis, começaram a chegar às escolas superiores estudantes com uma quase nula formação cívica e frágil capacidade de autoresponsabilização. E, pela primeira vez, eu e muitos colegas – com toda a experiência de anos de trabalho, com todo o prestígio que a maioria acreditava ter conquistado para a vida – começámos a ter problemas: alunos que conversam sistematicamente durante as aulas, que chegam atrasados todos os dias, que entram e saem sem uma palavra, que não desligam o telemóvel, que se dirigem ao professor de forma impertinente, que exigem facilidades confundidas com direitos sem cumprirem deveres, que em muitos casos nem sequer distinguem claramente as competências de quem ensina e as suas próprias obrigações. Falta o último passo que, ao que se vê, no ensino secundário há já muito tempo foi dado: transformar as aulas num campo de batalha. Este passo não é inevitável: quero acreditar que, a ser bem aplicado, o previsto sistema de tutorias possa ajudar a melhorar os processos de responsabilização e a articulação entre a vida e a escola, como quero acreditar que a ampliação dos cursos de 2º e 3º ciclo traga para a vida nas escolas superiores pessoas mais amadurecidas e tolerantes. Como acredito nos alunos interessados, empenhados e até afectuosos. Mas temo que, entretanto, algo de mau possa acontecer.
Claro que a maioria dos estudantes universitários – sei-o por tentar andar de olhos abertos e graças a uma sucessão de óptimas experiências pessoais – não se enquadra neste cenário de catástrofe anunciada. A maioria dos alunos do secundário, acredito, também não se adequará a ele. Só que aos outros, aos elementos de uma minoria a quem é permitido protagonismo, o sistema educativo em vigor e as políticas que estão a ser aplicadas, minando a centralidade do professor na escola como na sociedade, conferem um grau de manobra cada vez mais perigoso. Que o meio social envolvente observa demasiadas vezes com um encolher de ombros.
P.S. – Pouco deve interessar, em casos como aquele que desencadeou o actual debate, o desculpabilizador discurso pedopsi sobre o telemóvel enquanto prótese. A admissibilidade do seu uso imoderado começa quase sempre em casa e apenas é possível porque, daí até à escola, tem sido mantida toda uma rede de permissibilidade que não deixa muitos jovens perceberem (ou não os obriga a perceberem) que existe uma dimensão de sociabilidade moderadora da utilização lúdica ou produtiva da máquina, de qualquer máquina. Que há vida para além dela.
Pedagógico e demolidor o suplemento P2 do Público de hoje sobre os «Trinta anos que mudaram uma ilha». Trinta anos da Madeira de A. J. Jardim, evidentemente. O mesmo que dizer trinta anos de regionalização intensa e de muitas obras, de alguma ou de bastante utilidade, mas também trinta anos de corrupção, arbitrariedade, clientelismo king size e total descontrolo da despesa pública. Um bom exemplo na página 12: à melhor rede regional de edifícios escolares corresponde a maior taxa de analfabetismo do território nacional, o pior índice de aproveitamento, uma das mais elevadas percentagens de abandono e quase sempre os últimos lugares no ranking das escolas. Acrescento outro: uma rede de serviços de saúde megalómana e desproporcionada acompanha aquela que é de longe a maior taxa de alcoolismo do país. Dados que já não surpreendem, mas não deixam de chocar pela impunidade que suscitam. O mesmo no que concerne ao funcionamento obscuro da administração pública, à conivência da hierarquia católica com o poder, à tutela sem princípios da comunicação social, ao emaranhado reticular dos favores, à ausência de transparência nos concursos públicos, à inexistência do regime de incompatibilidades aplicado aos titulares dos cargos regionais, à política do betão que está a destruir a ilha diminuindo a qualidade ambiental e o nível da procura turística, ao endividamento constante e sem controlo. Trinta anos também da maior agressividade sobre quem se limite a denunciar esta vergonha. Tudo sob o olhar indulgente dos sucessivos governos da República. Sempre com um sorriso de circunstância guardado para o actor principal deste longo drama com ares de comédia.
Adenda – Já que falo do Público, uma nota negativa para um aspecto da nova colecção – para já, aparentemente útil e de fácil consulta – sobre a vida e a obra de alguns dos «Grandes Pensadores» da cultura do Ocidente-Norte: como é possível avançar com uma iniciativa destas, e divulgá-la profusamente, sem identificar a autoria dos volumes? Sinal positivo: disse-me hoje a senhora do quiosque onde levantei o meu exemplar que todos os clientes interessados se queixaram do mesmo.
O Partido Comunista Português manifestou-se colectivamente na rua, esvaziando os «centros de trabalho» e trazendo até à capital muitas pessoas que se identificam com a sua linha política e sobretudo com a sua bandeira. Fazê-lo numa «Marcha Liberdade e Democracia» permite relembrar a história dramática do seu combate contra a ditadura, mas repugna hoje a muitos cidadãos, para os quais a noção de liberdade não se adjectiva nem se relativiza, e deveria valer – aspecto ao qual o PCP não atribui um valor por aí além – a qualquer momento e em qualquer lugar do mundo. A manifestação teve na sua origem o protesto, justo ainda que provavelmente extemporâneo, contra uma nova lei dos partidos que reduzirá a capacidade de intervenção das forças políticas situadas fora do eixo PS-PSD e promoverá uma espécie de retorno serôdio ao modelo arcaico do «rotativismo». Uma boa prova do amor pela liberdade e pela democracia deveria, assim, ter passado por um diálogo franco, e marcado pelo mútuo respeito, com pelo menos uma parte das forças e correntes de opinião que tal lei irá minimizar ou tornar residuais. Ou mesmo com sectores dos grandes partidos do centro que não concordam com o projecto. Mas fazê-lo seria pedir demais à comprovadamente nula capacidade de diálogo dos comunistas portugueses, sempre pouco interessados em participar naquilo que não podem ou não conseguem controlar. E retiraria também ao desfile essa dimensão ritual de autocelebração e profissão de fé da qual o PCP carece cada vez mais. Nenhuma surpresa, pois.
O caso do docente de Braga, a quem terá sido dito que «um professor universitário não pode ser criativo nem humorista» e foi determinado que tivesse tento na língua, circula por aí, entalado entre jornais e monitores. Eduardo Pitta e Manuel António Pina dedicaram-lhe textos de sinal diverso. Muitos outros se lhes seguiram. Entretanto o móbil do «crime», o blogue do referido professor, de gosto duvidoso e humor que não fará propriamente rir multidões, não abona muito em favor do lançamento de uma efectiva vaga de indignação. Já um tal «Voto de Repúdio aprovado pelo Conselho do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional, em 27 de Fevereiro de 2008», no qual publicamente se declara que «o docente Daniel Luís é o único responsável pelo encerramento dos seus blogues, a que procedeu de livre vontade na sequência de um apelo do seu Departamento, votado e lavrado em acta», merece, pelo menos, a preocupação de qualquer cidadão capaz de reconhecer os valores essenciais do discernimento e da tolerância democrática. Seja ele universitário ou não. Tenha ou não sentido de humor.
«A esquerda não pode sacrificar a sua perspectiva própria a uma visão tecnocrática, alheia aos seus valores políticos, culturais, ambientais, etc. Isso vale para todas as áreas, mesmo aparentemente as mais ‘neutras’. Por exemplo, a modernização das infra-estruturas não pode dar-se contra a defesa do ambiente e a coesão territorial, antes promovendo-as. A modernização da economia não pode visar somente aumentar a produtividade e competitividade internacional, não podendo deixar de ser caracterizada pela luta pelo emprego e pela sua qualidade, pela justiça nas relações laborais, pela garantia das ‘obrigações de serviços público’ nos ‘serviços de interesse económico geral’. A modernização da administração pública não pode ter como objectivo somente a eficiência administrativa e o rigor das finanças públicas, mas também e sobretudo melhores serviços públicos para toda a gente. A modernização do sistema político não pode consistir somente em eliminar as suas disfunções, não podendo perder de vista a renovação da democracia, o incentivo a uma maior participação, o aumento da transparência e da responsabilidade política, e a descentralização territorial.»
A longa citação foi retirada do artigo de Vital Moreira que saiu ontem no jornal Público. No entanto, foi o mesmo VM quem, no recente Fórum Novas Fronteiras, afirmou estar «satisfeito com o que vejo hoje no país; quando começámos ninguém pensaria que chegaríamos tão longe». Presumindo que VM não usou o plural majestático, e prestando atenção a outras intervenções, quer-me parecer que temos aqui um excelente exemplo do estado de ligação com o real a que chegaram o responsáveis do PS e os seus companheiros de ocasião. Criticando práticas pelas quais são os primeiros responsáveis e associando-as a «alguém» ou a «qualquer coisa» que parece acreditarem nada ter a ver com eles, enunciam uma perigosa atitude de esquizofrenia política. Em nome do tal realismo, pois com certeza.